Em trâmite na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1.904/2024, que equipara o aborto ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos legais, gerou um amplo debate em todo o país. De autoria coletiva de 33 deputados, entre eles Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), Eduardo Bolsonaro (PL/SP), Carla Zambelli (PL/SP) e Nikolas Ferreira (PL/MG), o “PL do Aborto” aprovado na última quarta-feira (12) para tramitar em regime de urgência pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP/AL) — que em seguida recuou e passou a discussão para o segundo semestre após pressão popular — prevê pena de seis a 20 anos para quem realizar o procedimento após 22 semanas de gestação, pena maior que a atual condenação pelo crime de estupro, de seis a 10 anos. Já as gestantes menores de idade que interromperem a gravidez, de acordo com o deputado Sóstenes Cavalcante, cumpririam medidas socioeducativas.
“Ao equiparar o crime de aborto ao crime de homicídio simples, percebe-se que há violação ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade. A mensagem da proposta apresentada no PL 1.904/2024 é enfática quanto à inversão dos papéis sociais de vítima e de criminoso. A vítima passa a ser considerada criminosa por conduta a que não deu causa, o que resulta em um reforço da responsabilização das mulheres pelo crime de estupro e dos estereótipos implícitos e explícitos nos crimes contra a dignidade sexual. Sob o prisma da justiça social, apenas revitimiza e torna mais indigna e desumana a vida das mulheres e meninas vítimas de um crime tão violento”, analisa Carla Appollinário de Castro, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Projeto ignora a realidade das mulheres
No Brasil, a Constituição Federal permite a interrupção voluntária da gravidez em três situações: quando há anencefalia do feto, quando a gestação representa risco de vida para a mulher e quando é resultado de violência sexual. Nesses casos, não há limite de tempo para a realização do procedimento. “Todavia, é importante destacar que, no caso dos anencéfalos, o que se permite é uma ‘interrupção terapêutica da gestação’. Evitou-se, na época, o uso da palavra ‘aborto’, tanto pelas implicações jurídicas quanto pelas questões simbólicas e políticas trazidas pela palavra”, explica o professor do Departamento de Ciências Sociais da UFF Carlos Abraão Moura Valpassos
Em nota oficial, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, relembra que, caso aprovado, o projeto intensificará cada vez mais os ciclos de pobreza e vulnerabilidade de jovens pelo país. “Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) revelam que, em média, 38 meninas de até 14 anos se tornam mães a cada dia no Brasil, o que mostra o desafio que é para uma menina acessar o direito ao aborto legal no país. Em 2022, foram mais de 14 mil gravidezes entre meninas com idade entre 10 e 14 anos”, traz o comunicado. Além disso, a nota apresenta informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que revelam que aproximadamente 75 mil casos de estupro foram registrados em 2022, sendo 60% das vítimas crianças de até 13 anos e a maioria delas (57%) negras. “As principais vítimas de estupro no Brasil são meninas de até 14 anos, abusadas por seus familiares, como pais, avôs e tios. São essas meninas que mais precisam do serviço do aborto legal, e as que menos têm acesso a esse direito”, diz a nota.
Entre 2015 e 2019, 69.418 estupros foram cometidos. Desses, a maior parte (67%) tiveram como vítimas meninas de 10 a 14 anos, como aponta o estudo “Sem deixar ninguém para trás – Gravidez, maternidade e violência sexual na adolescência”, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs). Ainda segundo a pesquisa, 63,16% dos abusos aconteceram na casa das vítimas e 62,41% dos autores do crime eram conhecidos das pessoas violentadas. Para Castro, “a aprovação do PL do Aborto representa um grande retrocesso, pois dificulta os debates acerca da autonomia, autodeterminação, liberdade sexual e garantia dos direitos reprodutivos das mulheres”. De acordo com a professora e coordenadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia da UFF (SDD-UFF), a proposta “ainda revela o desconhecimento, por parte da Câmara, sobre as circunstâncias que levam as mulheres e as meninas a exercerem o seu direito e a procurarem pelo procedimento com idade gestacional já avançada, em especial, nos contextos de violências sexuais”.
Inconstitucionalidade da proposta
Em oposição ao PL, manifestantes foram às ruas em diversas cidades do país na última semana. Vestidas com lenços verdes, símbolo da luta pelo direito ao aborto, ativistas ocuparam as ruas em protesto contra aprovação da lei. Na mesma linha, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) aprovou a inconstitucionalidade do PL 1.904/2024 nesta segunda-feira (17). “No que diz respeito à ordem constitucional, o PL do Aborto viola os Princípios Constitucionais da dignidade da pessoa Humana, da vedação à tortura ou ao tratamento desumano ou degradante, da razoabilidade e da vedação ao retrocesso. Na minha visão, é uma proposta absolutamente inconstitucional, que vai de encontro a tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, incluindo os que tratam dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e meninas, todos incorporados pelo Estado Brasileiro”, afirma a docente de Direito.
Protestos em Brasília contra o Projeto de Lei 1.904/2024, apelidado de “PL do Aborto”, nesta quarta-feira (19) / Foto: Marcelo Camargo (Agência Brasil)
#ParaTodosVerem Imagem mostra mulheres com lenços verdes, cor símbolo da luta pelo direito ao aborto, e cartazes com frases contra o PL 1.904/2024
Os especialistas ainda alertam para outra questão: a influência religiosa no debate público. “O que se apresenta é um ataque ao Estado Laico de Direito, feito por dentro, através dos mecanismos legais disponíveis. Isso nos afasta das ideias de República, de liberdade, de direitos humanos e mesmo de democracia, uma vez que acena para uma teocracia radicalizada, fundamentalista. Nesse sentido, a própria concepção do PL representa um retrocesso, uma ameaça às liberdades individuais, ao Estado laico e à vida das mulheres, sobretudo as mulheres e meninas negras e periféricas”, avalia Valpassos.
Contexto global
Segundo a ONG Centro para Direitos Reprodutivos, o aborto é legalizado em 77 países, nos quais cada nação estipula até quando é possível realizar o procedimento, mas a maioria determina entre 10 a 14 semanas, ou seja, cerca de dois a três meses de gravidez. Na América do Sul, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Argentina e Uruguai permitem o aborto. No Chile, a medida foi descriminalizada em 2021, mas ainda não regulamentada.
Segundo a ONG Centro para Direitos Reprodutivos, o aborto é legalizado em 77 países, nos quais cada nação estipula até quando é possível realizar o procedimento / Foto: Centro para Direitos Reprodutivos (Reprodução)
#ParaTodosVerem Mapa mostra o panorama internacional do direito ao aborto
Doutor em Antropologia e autor do livro “Abortos: Dramas Sociais e Histórias Sobre eles”, Valpassos observa a posição brasileira em relação ao mundo. “Em quase todo o continente europeu o aborto é um direito, um recurso previsto em lei. Nos Estados Unidos também, assim como na Austrália e, mais recentemente, no Uruguai e na Argentina. Em todos os lugares onde o aborto foi legalizado, cabe destacar, não houve um aumento do aborto como recurso, mas sim uma melhoria no que tange à saúde das mulheres, uma vez que as políticas públicas de saúde trabalham com prerrogativas de promoção de direitos reprodutivos, o que implica em melhoria de acesso a contraceptivos, reduzindo assim as gestações não planejadas”.
Para o docente, no Brasil, apesar de ser possível a realização de abortos legais, essa não é uma questão simples, já que está restrita a questões específicas, como o risco de morte, o estupro ou a interrupção em casos de anencefalia: “Sempre há um caminho burocrático lento, sofrido e, muitas vezes, marcado por insultos morais e humilhações”.
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Carla Appollinário de Castro é doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF). Graduada em Direito, atualmente é professora do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense.
Carlos Abraão Moura Valpassos é professor adjunto no Departamento de Ciências Sociais, no Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR) da Universidade Federal Fluminense (UFF). É também professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais na Universidade Estadual do Norte Fluminense – Darcy Ribeiro (UENF). Possui bacharelado em Ciências Sociais pela UENF, mestrado em Antropologia pelo PPGA-UFF e doutorado em Antropologia Cultural pelo PPGSA/IFCS-UFRJ. Atualmente, é Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Sociais, Sociais Aplicadas, Humanas, Letras, Artes e Linguística (CEP Humanas UFF) e compõe o Comitê de Acesso ao Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado da UFF (UFFGen). Coordena o Atelier de Etnografias e Narrativas Antropolíticas (ATENA) e é pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).