A maternidade é um momento de grande transformação na vida de qualquer mulher. Entretanto, maternar tem consequências que ainda reforçam estereótipos sociais do gênero feminino. Na vida profissional, a mulher lida até hoje com a mentalidade de que, após a chegada dos filhos, a carreira fica em segundo lugar. Dados da segunda edição do estudo “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, revelam que o nível de ocupação profissional das mulheres de 25 a 49 anos que residem com crianças com idade inferior a 3 anos é de 54,6%, enquanto entre os homens esse percentual é de 89,2%. Trata-se de uma disparidade que comprova estatisticamente como é difícil ter uma carreira e ser mãe no Brasil.
Esse é um problema que atinge mulheres em múltiplas áreas de atuação. No meio acadêmico, o quadro não é diferente. Pensando em levantar a discussão sobre parentalidade no meio científico, em 2016 teve início o movimento “Parent in Science”. O projeto é fruto da necessidade de perceber a maternidade e a paternidade como fatores que impactam a carreira de cientistas do Brasil. A iniciativa, criada na Universidade do Rio Grande do Sul, é pioneira no levantamento de dados quantitativos sobre o tema, que avalia profundamente as consequências da chegada dos filhos em diferentes etapas da vida acadêmica.
Vale destacar que a UFF foi a primeira universidade brasileira a construir uma política de apoio à maternidade nos seus editais PIBIC. Outro avanço foi a aprovação no regulamento geral dos programas de pós-graduação stricto sensu no que diz respeito a mudanças de apoio à maternidade, tanto para discentes quanto docentes. Essas decisões pioneiras são muito importantes para a construção de uma maior representatividade materna na universidade – Letícia de Oliveira
A Universidade Federal Fluminense tem como representante no movimento a professora do Departamento de Fisiologia e Farmacologia Letícia de Oliveira. A pesquisadora coordena o grupo de trabalho (GT) “Mulheres na Ciência”, instituído desde 2018 pela UFF. A docente pontua que antes de ser convidada a participar do “Parent in Science”, já estava construindo esse GT com a professora Karin Calaza, do Departamento de Neurobiologia da UFF. Além disso, as docentes tinham um trabalho paralelo com as professoras da UFRJ Eliane Volchan e a Fátima Herthal sobre os estereótipos implícitos, um fator que pode atrapalhar muito as mulheres na progressão da carreira.
“No meio acadêmico, esses estereótipos implícitos trazem duas grandes questões. As mulheres não chegam ao topo, por exemplo. Temos poucas reitoras em universidades, a academia brasileira de ciências nunca teve uma mulher como presidente, ou seja, quanto mais alto e mais político o cargo, menor o percentual de mulheres. Outro ponto é que mulheres também têm pouca representatividade nas áreas exatas e tecnológicas desde a base. Mesmo nos cursos de graduação há um pequeno percentual feminino”.
De acordo com Letícia, o “Parent in Science” reafirma sempre que a maternidade não é um problema, mas sim a falta de políticas de apoio. Essa defasagem faz com que muitas mães desistam da carreira por conta das atribuições sociais excessivas da mulher relacionadas ao cuidado. “No ocidente judaico-cristão, o cuidado é muito centrado na figura da mãe; porém, existem culturas, como as indígenas e africanas, nas quais as crianças são cuidadas pela comunidade. Temos também o problema da paternidade que, em muitos momentos, não é assumida em sua plenitude, o que sobrecarrega as mães. A desconstrução desses pontos também é um movimento que o projeto faz”, explica.
A docente relata que o movimento tem uma ação bem restrita à academia e ao levantamento quantitativo de dados a fim de mostrar o tamanho do problema para a comunidade científica, as instituições e as agências de fomento. “O projeto tem ajudado a aumentar a representação feminina em espaços de tomada de decisão na academia e fora dela, divulgar esclarecimentos sobre os estereótipo implícitos e como lidar com ele em processos seletivos e avaliações, além de formar e fortalecer uma rede nacional e internacional diversificada e inclusiva para incentivar mães e pais a prosperarem em suas carreiras acadêmicas”.
“Nesse contexto, vale destacar que a UFF foi a primeira universidade brasileira a construir uma política de apoio à maternidade nos seus editais PIBIC. Outro avanço foi a aprovação no regulamento geral dos programas de pós-graduação stricto sensu no que diz respeito a mudanças de apoio à maternidade, tanto para discentes quanto docentes. Essas decisões pioneiras são muito importantes para a construção de uma maior representatividade materna na universidade”. Segundo Letícia, uma discente mãe que vai fazer seleção de mestrado ou doutorado, por exemplo, terá seu currículo avaliado de forma diferenciada. Já as professoras que fazem parte dos programas de pós-graduação, tanto para se credenciarem quanto para se recredenciarem, se forem mães, também terão uma política diferente de avaliação do currículo.
Parent in Science recebe prêmio de revista internacional na categoria “Mulheres inspiradoras na ciência”
O movimento “Parent in Science” venceu a edição de 2021 do prêmio “Mulheres Inspiradoras na Ciência” concedido pela revista britânica Nature – uma das maiores publicações científicas do mundo – na categoria Science Outreach. O prêmio foi concedido em parceria com a companhia Estée Lauder e tem como objetivo celebrar e apoiar as conquistas das mulheres na ciência, sobretudo das mães, e de todos aqueles que trabalham em prol da equidade de gênero no meio científico. “Foi a primeira vez que uma equipe brasileira foi agraciada com a premiação. A iniciativa recebeu cerca de 40 mil dólares e também o convite para realizar apresentações e mentorias na empresa Estée Lauder sobre o trabalho que desenvolve em sistematização de dados e na luta pela implantação de políticas de apoio às mães na academia”, ressalta Letícia.
O prêmio “Mulheres inspiradoras na ciência” traz um reconhecimento muito grande para o movimento “Parent in Science” e para todas as universidades, como a UFF, que participam da iniciativa. “Já temos vários projetos em construção para a utilização dos 40 mil reais que a premiação concede. Esse dinheiro irá ajudar muito a implementar as políticas de apoio às mães, principalmente as acadêmicas discentes e em situação de vulnerabilidade – Letícia de Oliveira
De acordo com a pesquisadora, um dos primeiros levantamentos feitos pelo grupo, por meio da avaliação do Currículo Lattes das cientistas, foi um trabalho relevante do movimento “Parent in Science” para a premiação. “Observamos a diminuição no número de publicações de artigos para as acadêmicas mães após o nascimento dos filhos. Essa queda dura cerca de cinco ou seis anos, enquanto para cientistas sem filhos o número de artigos aumentou de maneira linear com o avanço da carreira. Estes dados deram suporte a diversas ações que levaram a grandes conquistas e mudanças concretas sobre a maternidade no cenário científico brasileiro, como a inclusão do campo “licença maternidade” no Lattes. Com isso, os avaliadores podem, ao menos, entender a lacuna de produtividade que geralmente ocorre no currículo das mulheres mães. Foram três anos de luta para que o CNPq fizesse essa inclusão e isso foi considerado um grande avanço para a revista Nature”, conta Letícia.
Segundo a docente, mesmo durante a pandemia de COVID-19 o “Parent in Science” seguiu trabalhando. O grupo publicou um artigo mapeando o efeito do isolamento social na produtividade de cientistas do Brasil. “Percebemos um efeito claro de gênero na publicação de artigos durante a pandemia. As mulheres publicaram bem menos artigos do que planejavam do que os homens. Nesse contexto, mães com filhos de até 12 anos e mulheres negras, independentemente de serem mães, são as mais impactadas, o que demonstra a interseccionalidade do problema entre gênero, maternidade e raça. Esse é um trabalho original na literatura acadêmica por ter observado o fator racial na intersecção da questão, o que também foi considerado muito importante para a banca de avaliação do prêmio”.
Além disso, o movimento elaborou o programa “amanhã”, que foi criado para ajudar alunas de pós-graduação em alta vulnerabilidade. “A ação foi uma campanha de financiamento coletivo que dava ajuda financeira para que essas mulheres pudessem terminar o curso de pós-graduação, especialmente considerando o contexto da pandemia, que ampliou todas as desigualdades de gênero que já existiam”, acrescenta a pesquisadora da UFF.
Para Letícia, o prêmio “Mulheres inspiradoras na ciência” traz um reconhecimento muito grande para o movimento “Parent in Science” e para todas as universidades, como a UFF, que participam da iniciativa. “Já temos vários projetos em construção para a utilização dos 40 mil reais que a premiação concede. Esse dinheiro irá ajudar muito a implementar as políticas de apoio às mães, principalmente as acadêmicas discentes e em situação de vulnerabilidade”, conclui.