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UFF responde: Doação de órgãos

Número de transplantes cresce no país, mas recusa das famílias ainda é grande
Reprodução: Jornal da USP

 

As doações de órgãos e tecidos no Brasil aumentaram 17% em 2023 e o número de transplantes foi o maior em uma década. Segundo uma pesquisa do Governo Federal, entre janeiro e setembro do ano passado, foram realizados mais de seis mil transplantes, com cerca de três mil doações efetivadas. Pilar fundamental na saúde pública, esse progresso mostra um reflexo do crescente estudo nacional para melhorar as taxas de doação, o entendimento popular do assunto e a eficácia dos procedimentos transplantadores.

Apesar dos avanços, o país ainda vive um estigma relacionado à doação de órgãos. De acordo com o Ministério da Saúde, 42,5% das famílias brasileiras não aceitam doar os órgãos ou tecidos de seus familiares falecidos. Em meio a este fato, o Dia Nacional de Incentivo à Doação de Órgãos, celebrado em 27 de setembro, visa sensibilizar a população e encorajar discussões sobre o tema dentro das famílias, que, muitas vezes, são fundamentais no processo de autorização. Além disso, o marco também serve para reconhecer os esforços de profissionais da saúde, organizações e doadores que tornam o sistema de transplantes possível no Brasil. 

Para analisar o cenário e as perspectivas da doação de órgãos no país , convidamos a psicóloga e professora permanente do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal Fluminense (MPES/UFF), Marilei de Melo Tavares e Souza. 

Como funciona a doação de órgãos e tecidos no Brasil?

Marilei Souza: O transplante de órgãos e tecidos no Brasil existe desde 1997 como um programa de nível nacional que assume duas formas: através de doadores vivos ou de cadáveres que tenham órgãos vivos. Existem diversos tipos de transplante, como coração, rins, fígado, córnea,  pele, ossos, entre outros. Então, é preciso entender que a partir desta doação, pode-se melhorar a qualidade de vida daquela pessoa que está precisando do transplante. Esse processo é realizado voluntariamente, além de não existir nenhuma forma de pagar pelo procedimento. Toda operação é organizada através do Sistema Único de Saúde (SUS), onde, hoje, dividem-se as pessoas por listas de grupo sanguíneo e avaliação das condições do paciente.

Qual é a importância da doação de órgãos e quais são os principais desafios enfrentados pelo sistema de transplantes de órgãos no Brasil e para o incentivo de doações?

Marilei Souza:  O transplante é o sonho de todo paciente com órgãos em falha, pois interfere muito na vida diária. Imagine como é a qualidade de vida de uma pessoa que fica à base de máquinas. O órgão dela tem dificuldade ou não funciona mais, então começa a espera por um novo órgão. Claro que existem maneiras de fazer procedimentos substitutivos para a função do órgão não funcional, como a hemodiálise para casos de rins em falha, por exemplo, mas o transplante é hoje considerado a única forma de cura para sair deste processo maquinal. Após o procedimento, os pacientes têm de estar em posse de imunossupressores, que são medicamentos para proteger o órgão novo de ataques do organismo.

O maior impasse no meio da doação de órgãos e tecidos é a desinformação. Isto se torna desafiador, pois as pessoas não compreendem as informações. Logo, a mídia presta um serviço muito grande ao conscientizar a população que está na fila dos transplantes e seus familiares.

Falar sobre a morte também é uma das questões mais difíceis, porque, quando se fala de transplante, fala-se da perda de um familiar.  Existem órgãos que trabalham com isso nos hospitais, então, é preciso entender que essa captação não é só “pegar o órgão”, mas sim trabalhar com a família do doador tanto na orientação ou informação do que é o transplante quanto na autorização da doação. 

Como os pacientes são classificados e priorizados na lista de espera para transplantes de órgãos no Brasil?

Marilei Souza: Aqui no Brasil há uma classificação por tipagem sanguínea, logo, inicialmente, os pacientes são separados entre os da mesma categoria. Após, vê-se a compatibilidade de peso, altura, genética, gravidade e órgão. Isso acontece, pois existem pessoas que têm comorbidades e seria delicado passar por uma intervenção cirúrgica. Por essa razão, reúnem-se os candidatos com a melhor condição de passar por um transplante com sucesso. 

Quando um órgão está disponível, chamam-se as três pessoas no topo da lista, e estuda-se qual delas reúne a melhor condição para poder passar pelo procedimento. No caso dos rins, são eleitas duas pessoas. O candidato não selecionado volta para a mesma posição que ocupava anteriormente, e pode ter uma nova chance no próximo órgão. 

Como funciona e o que seria a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO)?

Marilei Souza: A Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO) é uma ferramenta digital que permite que as pessoas manifestem previamente sua vontade de doar órgãos. Atualmente, a decisão de doar os órgãos depende exclusivamente da família, uma vez que não há um documento físico ou digital que assegure automaticamente a doação. Com isso, essa autorização busca registrar o desejo do doador em vida, e garantir que a equipe médica tenha acesso a essa informação de forma ágil, sem que seja necessário consultar a família em um momento tão delicado.

Com a AEDO, o processo de doação se torna mais rápido, o que é crucial, pois o tempo é um fator determinante para a viabilidade dos órgãos. Além disso, a ferramenta digital evita a necessidade de discussões familiares sobre o desejo do falecido, já que a manifestação oficial do doador estará registrada. Isso facilita o trabalho dos profissionais de saúde e garante maior segurança jurídica para todas as partes envolvidas no processo de doação.

O uso deste registro digital também contribui para reduzir o número de pessoas na lista de espera por um transplante, uma vez que otimiza a identificação de possíveis doadores em tempo hábil. Ademais, a ferramenta ajuda a sensibilizar a população sobre a importância de manifestar o desejo de ser doador, colabora com a transparência e o diálogo em torno da doação de órgãos no Brasil.

Dados de 2023 apontam que o Brasil registrou o maior número de transplantes de órgãos em dez anos, a que se deve esse aumento? Quais iniciativas podem ter contribuído para isso? 

Marilei Souza:  Certamente, a mídia desempenha um papel fundamental na conscientização sobre a doação de órgãos e tecidos. Sempre que uma pessoa pública passa por um transplante, isso gera grande impacto social. A televisão, em particular, ainda é uma das mídias mais influentes nesse processo. Nos últimos anos, o tema tem sido mais debatido, seja em entrevistas, vídeos no YouTube ou em reportagens. As pessoas começam a perceber que tanto a doação quanto o transplante são uma realidade acessível, e essa visibilidade é crucial para sensibilizar a população.

Um exemplo marcante foi o caso de Eloá, em que a jovem foi mantida em cativeiro por horas e, após sua morte, sua família decidiu doar todos os seus órgãos. Esse gesto foi amplamente divulgado na televisão, que, naquela época, era a principal fonte de notícias. O impacto foi tão grande que o número de doações de órgãos aumentou significativamente naquele ano, mostrando o poder que a comunicação tem para influenciar positivamente o número de transplantes.

Outros casos de doação pública, como o do Gugu Liberato, cuja família doou seus órgãos, e o recente transplante do apresentador Faustão, também trazem à tona a importância da doação. Quanto mais se fala sobre o tema, mais as pessoas compreendem que é possível doar diferentes tipos de órgãos, além de córneas, por exemplo. O avanço na comunicação e nos programas de transplante tem tornado o processo mais ágil e acessível, não apenas em grandes centros, mas em várias regiões do país.

Dada a diversidade cultural e socioeconômica do Brasil, como as campanhas de conscientização sobre a doação de órgãos podem ser adaptadas para atingir diferentes grupos da população? Quais estratégias são mais eficazes para superar barreiras culturais, religiosas e o estigma em torno do tema?

Marilei Souza: Adaptar as campanhas de conscientização sobre doação de órgãos para alcançar diferentes grupos da população é um desafio a ser enfrentado. O ponto principal aqui é que, ao promover a saúde e a doação de órgãos, a comunicação deve ser clara e acessível para todos, independentemente de suas condições socioeconômicas ou culturais. 

Primeiramente, é importante entender que a informação é a base para permitir a consciência sobre o diagnóstico e prognóstico de uma condição de saúde, o que faz uma grande diferença na vida de uma pessoa. No caso da doação de órgãos, é preciso entender que a necessidade de um transplante não significa o fim, mas sim uma oportunidade de vida. No Brasil, o acesso à informação e aos serviços de saúde pode variar muito, visto que em áreas remotas ou com menos recursos podem ter dificuldades em obter detalhes e cuidados adequados. Mesmo utilizando o SUS, existem desafios logísticos, como a distância das unidades de saúde e a falta de recursos para deslocamento e alimentação.

Além desses entraves, muitas pessoas não estão cientes de que podem precisar de um transplante no futuro. Muitas vezes, doenças que levam a essa necessidade, como problemas renais e pressão alta, podem não ser detectadas até que se tornem graves. Então, para superar essas barreiras, as campanhas de conscientização devem adotar estratégias adaptadas a diferentes realidades, pois é fundamental promover educação sobre saúde de maneira inclusiva e com alcance a todas as camadas da sociedade. Para além disso, as campanhas precisam ser continuamente atualizadas e a divulgação científica sobre transplantes tem que ser acessível ao público geral.

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Marilei de Melo Tavares e Souza é professora adjunta com Licenciatura em Psicologia (1998) e Graduação em Psicologia (1998) pela Universidade de Brasília. Doutorou-se em Ciências da Saúde (UNIRIO, 2017) e realizou pós-doutorado na UERJ (2018). Atua como coordenadora e docente em programas de pós-graduação na Universidade de Vassouras e UFF. É editora da Revista Pró-UniverSUS e coordenadora de projetos de pesquisa em saúde.

 

Por Lívia Galvão
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