Após a chegada dos europeus às Américas, uma parcela considerável das populações originárias foi dizimada. Esse massacre pode ser descrito não apenas em termos da lastimável perda de vidas humanas, mas também do consequente desaparecimento de todo seu patrimônio cultural: seus saberes, práticas, produções artísticas e, também, de suas línguas nativas. De acordo com a Funai, em 1500, a população de índios no Brasil girava em torno de 3 milhões de pessoas. Dados recentes do IBGE (Censo 2010), indicam que existem aproximadamente 800 mil indígenas, divididos em 305 etnias e com um total de 274 línguas, contra as mais de mil de antes da colonização.
As línguas são muito mais do que apenas formas de se comunicar, elas trazem consigo também os saberes que marcam a identidade e o pensamento de um povo – seus traços culturais, conhecimentos ecológicos, imaginário religioso e também sua história e a forma específica de conceber a realidade. A cada língua que morre, portanto, desaparecem também partes do patrimônio cultural e histórico da humanidade. É justamente nesse sentido que preservar as línguas e culturas brasileiras é fundamental. Segundo a professora do Instituto de Letras da UFF, Luciana Sanches-Mendez, “o papel da universidade é essencial na preservação das línguas e das culturas indígenas no país. É no contexto da universidade que são feitos os trabalhos de descrição e documentação e o financiamento público é fundamental para fomentar as pesquisas nessa área”, declara.
Em 2017, a pesquisadora, que trabalha com línguas indígenas há 14 anos, aplicou um experimento linguístico de leitura a uma parcela da população Karitiana em Porto Velho (RO), com apoio financeiro da Pró-reitoria de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação (Proppi). O objetivo do estudo foi o de verificar como se dava o processamento de advérbios em falantes da língua Karitiana. “Esse tipo de pesquisa contribui para agrupar as línguas segundo certas características e também para a identificação de universais linguísticos. Se estamos buscando caracterizar o que há de comum entre todas as línguas humanas, precisamos olhar para um universo linguístico amplo. Nesse sentido, a variedade encontrada no nosso país é riquíssima”, pontua.
“Eles veem na importância dada a sua língua uma forma de reconhecimento identitário importante, principalmente nos tempos atuais, em que as comunidades são tão atacadas”, Luciana Sanchez-Mendes.
Os Karitiana são uma tribo de Rondônia com aproximadamente 320 pessoas e seu idioma é o único remanescente da família linguística Arikém. “Trabalho com eles desde 2005, então, tenho uma certa facilidade em negociar minha presença na comunidade. Nessa última atividade de campo, a novidade foi a metodologia experimental que, diferente das coletas anteriores, exigia uma sala reservada e o uso de computadores. A adaptação, no entanto, foi fácil, já que seu uso não é mais uma grande novidade na comunidade”, explica.
Luciana ressalta ainda a importância que dispositivos eletrônicos podem assumir para a preservação de línguas subrepresentadas e, consequentemente, de parte do patrimônio cultural dos povos indígenas: “a tecnologia tem feito parte do dia a dia da comunidade. Muitos falantes de Karitiana têm smartphones, por exemplo. A utilização dessas ferramentas para a preservação da língua e da cultura representa, portanto, uma grande potencialidade”. Ela ainda acrescenta que “executar um experimento com uma abordagem teórica recente e uma metodologia moderna reforça o reconhecimento dos idiomas nativos do Brasil como línguas naturais que merecem e devem ser investigadas”.
Segundo a professora, no caso específico do Karitiana, muitos pesquisadores no país estão estudando seus diversos aspectos linguísticos. “Acho que, para a tribo, esse interesse acabou gerando mais confiança sobre a seriedade do trabalho dos linguistas. No entanto, reconheço que nem sempre é assim”. Os resultados dos estudos realizados pela pesquisadora estão disponíveis na página do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguística Teórica e Experimental (Gepex).
2019: Ano Internacional das Línguas Indígenas
A cada ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) aborda temas ligados a determinados aspectos relevantes para a humanidade e, em 2019, está sendo celebrado o Ano Internacional das Línguas Indígenas. Por conta da grande diversidade de línguas autóctones, o Brasil é um dos maiores contemplados da comemoração.
“Em consonância com o Ano Internacional das Línguas Indígenas, em novembro, por exemplo, aconteceu no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o Seminário Internacional Viva Língua Viva 2019. O evento foi acolhido como projeto pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin) e teve o objetivo de discutir e fomentar o desenvolvimento de ações de preservação e revitalização de línguas indígenas e minoritárias. Isso vem acontecendo com a luta de muitos colegas de várias universidades”, destaca Luciana.
Segundo a professora, pesquisas com línguas consideradas subrepresentadas contribuem enormemente para a autoestima da comunidade. “Eles veem na importância dada a sua língua uma forma de reconhecimento identitário importante, principalmente nos tempos atuais, em que as comunidades são tão atacadas”, enfatiza.
Sanches-Mendez destaca ainda como esse trabalho com culturas diferentes alterou suas concepções de mundo. “Como professora de português e de linguística, a experiência com línguas indígenas ampliou meu repertório e me transformou em uma profissional cada vez mais interessada em estudar diferentes variedades de línguas e em chamar a atenção para essa diversidade. Já como cidadã, hoje entendo melhor a importância de trazer de forma objetiva para a pesquisa brasileira dados que mostram que essas línguas são tão complexas quanto o português e outras línguas naturais e merecem, portanto, ser reconhecidas e respeitadas”.
Nesse sentido, Luciana ressalta outro ponto crucial na luta pela conservação das culturas indígenas: a necessidade do investimento público para a continuidade da investigação científica. “A área de humanidades é sempre eleita como alvo nos momentos de contingenciamento de gastos. No entanto, a preservação das línguas e culturas indígenas é urgente e não pode sofrer com essas variações. Mais do que nunca a universidade pública deve assumir um papel de protagonista nos projetos de preservação”, conclui.