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Intelectuais negros nas Américas

Pesquisa da UFF se baseia em pensadores negros para leitura crítica da escravidão e do racismo científico
Ynaê Lopes se debruça na trajetória de intelectuais como Manuel Querino, Juliano Moreira e Juan Gualberto Gómez | Créditos: Reprodução da internet

 

“A produção de narrativas contra-hegemônicas demanda olhares distintos para a abordagem de seus elementos centrais”. É partindo dessa visão, que a professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora dos livros “Racismo brasileiro” e “História da África e do Brasil Afrodescendente”, Ynaê Lopes dos Santos, fala sobre o negro e sua herança africana na construção nacional de países do continente americano. No âmbito do projeto Jovens Cientistas do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (JCNE-FAPERJ), duas pesquisas que  focam em pensadores do Brasil, Estados Unidos, Cuba e Haiti.

A primeira pesquisa, intitulada “Intelligenza Negra nas Américas. Escravidão e herança africana nas obras de Manuel Querino, W.E.B Dubois e Lino Dou Allión“, se debruçou em fazer uma leitura crítica da escravidão nesses países, a partir da produção de três intelectuais negros: Manuel Querino no Brasil; Lino Dou, em Cuba; e W.E.B. Du Bois nos Estados Unidos.

Manuel Quirino e W.E.B Du Bois | Créditos: FAPERJ

“O primeiro foco foi Manuel Querino e Lino Dou, respectivamente brasileiro e cubano, e, depois, W.E.B. Du Bois, estadunidense. A escolha de intelectuais desses países está diretamente vinculada a uma categoria usada no meu doutorado, que é a ‘segunda escravidão’. Essa categoria considera países que, apesar dos fortes movimentos abolicionistas e das constantes resistências das populações escravizadas, mantiveram políticas econômicas baseadas na escravidão. Os países estudados continuaram a explorar a escravidão durante o século 19, atrelando essa prática ao desenvolvimento da Revolução Industrial, e do capitalismo”, comenta Lopes.

Com o avanço do projeto, a pesquisadora lembra que o plano de pesquisa foi se adequando conforme novas informações eram observadas. “Na pandemia, por exemplo, precisei repensar as viagens de campo previstas para Cuba, Estados Unidos e Brasil. Essas mudanças me levaram a fazer uma escolha: aprofundar-me nos estudos de Brasil e Cuba, que têm menor visibilidade acadêmica. Dessa forma, acabei me concentrando em divulgar intelectuais menos conhecidos”.

No caso brasileiro, a professora fez pesquisas sobre Manuel Querino, primeiro intelectual brasileiro a positivar a herança africana no país, que também foi abolicionista, sindicalista, professor, artistas, político e um importante intérprete do Brasil, cuja obra está sendo revisitada recentemente, graças a pesquisas de alguns historiadores e também a iniciativas como o Podcast Projeto Querino, do qual Ynaê Lopes foi consultora. 

Em Cuba, ao examinar Lino Dou, o estudo revelou um outro ator fundamental: Juan Gualberto Gomez, mentor do intelectual e grande liderança negra em Cuba na virada do século 19 para o século 20. Gualberto Gomes teve uma atuação política importante, viveu na França e se articulou com o movimento negro dos Estados Unidos, especialmente em Nova York. 

Jornal ‘Flor de Tomás Gutierrez’ | Créditos: Ynaê Lopes

Outro importante intelectual despontou ao longo dos estudos: o antropólogo haitiano Anténor Firmin, que, em 1885, escreveu o livro “De l’Égalité des Races Humaines”, refutando os argumentos do cientista francês Arthur de Gobineau. “Esse livro de Firmin é extenso e técnico, com uma resposta sistemática aos argumentos racistas de Gobineau. Embora não tenhamos ainda uma tradução para o português, considero fundamental para nossos estudos. Dessa forma, integrei Firmin ao projeto, por sua relevância como crítico pioneiro do racismo científico”, explica a docente.

Diante das análises, o projeto passou a se concentrar menos na análise dos discursos sobre escravidão, e mais nas maneiras como esses intelectuais negros contestaram o racismo científico, criando narrativas de resistência. “É interessante notar que eles estavam, de certa forma, adiantados em relação aos questionamentos que só seriam abordados por intelectuais brancos na década de 1910 ou 1920. Contudo, esse pioneirismo dos intelectuais negros não foi devidamente reconhecido, e um dos meus objetivos com o projeto é justamente divulgar suas biografias e articulações nacionais e internacionais”, acrescenta a historiadora.

Intelectuais negros nas escolas 

Ao visitar escolas, Ynaê Lopes percebeu que esses intelectuais negros e o conceito de intelectualidade negra era desconhecido para grande parte dos estudantes do ensino médio. Diante dessa oportunidade, o projeto de pesquisa passou a disponibilizar mais dados e informações sobre esses personagens históricos.

“Criei um site chamado ‘Intelectuais Negros’, hospedado na UFF, no qual disponibilizo informações sobre quarenta pensadores negros que nasceram no século 19. Esse site continua sendo atualizado e inclui uma biografia resumida e uma fotografia dos intelectuais, além de referências bibliográficas para quem deseja encontrar mais dados sobre eles. No site, também há um minidocumentário mais específico sobre Manuel Querino e Lino Dou, que foram os intelectuais estudados com maior profundidade”, explica a professora.

Encontro com Robaina em Cuba

Há dois anos, Lopes organizou uma viagem para Cuba, onde estendeu sua pesquisa com  entrevistas a intelectuais negros, como Tomás Fernández Robaina, que faleceu este ano. “Eu fui a Cuba sem planejar essa entrevista, só queria ajuda para encontrar livros e localizar alguns arquivos. Mas, ao estar lá, vi que era uma oportunidade para entrevistá-lo. Ele já estava bastante debilitado devido ao câncer, mas aceitou me receber”, conta a pesquisadora.

Robaina compartilhou informações sobre outros intelectuais negros, ajudando a pesquisadora a entender que havia uma constelação de pensadores trabalhando nessas ideias. “Ele me deu acesso a três jornais específicos que eu precisava, pois um de seus ex-alunos tinha as edições digitalizadas e gentilmente compartilhou comigo. Assim, reuni um material muito rico que permite entender melhor o que chamei de ‘inteligência negra’”, acrescenta.

Ynaê Lopes e Tomás Fernandez Robaina, em Havana | Créditos: Ynaê Lopes

A entrevista foi publicada na ‘Revista Tempo’, e parte da pesquisa do primeiro projeto foi também publicada na ‘Revista Estudos Históricos’.  Leia aqui.

Nova pesquisa amplia intelectuais estudados

O primeiro projeto, finalizado em 2022, além de divulgar a trajetória desses intelectuais, amplia o debate, saindo do enfoque exclusivo sobre a escravidão para abordar como esses homens negros se posicionavam em relação às teorias racistas vigentes. Deste modo, no segundo projeto JCNE-FAPERJ, a opção de pesquisa foi ampliar o repertório de intelectuais estudados, a partir do exame de suas obras sobre o racismo científico. Além de Firmin e Juan Gualberto Gomez, Juliano Moreira – um dos mais importantes psiquiatras negros que atuou no início da Primeira República – também foi incorporado ao projeto. Juliano Moreira foi diretor do Hospício Nacional e promovendo a primeira reforma psiquiátrica do Brasil e fez importantes apontamentos contrários à teoria de degenerescência racial.

Juliano Moreira, Juan Gualberto Gomez e Anténor Firmin | Créditos: FAPERJ

“Como ainda tenho um ano de bolsa de pesquisa e, embora seja difícil estudar o Haiti devido à situação local, estou conduzindo a pesquisa a partir de bases de arquivos franceses. A obra de Firmin serve como referência para analisar as formulações contra a degeneração racial. Além disso, planejo uma nova viagem a Cuba para aprofundar o estudo sobre Juan Gualberto Gomez, e tenho conduzido pesquisas no Brasil, especialmente na Bahia, onde Manuel Quirino e Juliano Moreira nasceram e desenvolveram parte de seu trabalho”, conclui Lopes.

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Ynaê Lopes dos Santos é Bacharel e Licenciada em História pela Universidade de São Paulo. É Mestre e Doutora em História Social pela USP. Atualmente é Professora Adjunta de História da América da Universidade Federal Fluminense e atua no PPGH-UFF e no Prof. História-UFF.Suas áreas de pesquisa tratam da História da Escravidão nas Américas, bem como o estudo das Relações Raciais no continente americano e também do ensino de História da África e da questão negra no Brasil, com livros e artigos publicados nessas áreas. É Jovem Pesquisadora do Nosso Estado – FAPERJ (2018 e 2022), Bolsista de Produtividade CNPq, Vice Coordenadora do GT Afro-Américas da ANPUH.

 

Por Fernanda Nunes
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