Durante o século XX, o Brasil passou por profundas transformações de ordem econômica, social e política. As mais importantes ocorreram no plano econômico, com modificações em sua estrutura produtiva em função do processo de industrialização, em curso desde o final do século XIX. Nos anos trinta, quando Getúlio Vargas ascendeu ao poder com o apoio da aliança liberal, formada por tenentistas e dissidências oligárquicas, a tradição da economia brasileira começou a ganhar novas formas.
É no ano de 1930 que se inicia a narrativa do livro “A economia brasileira de Getúlio a Dilma”, organizado pelos professores da Faculdade de Economia da UFF, Fernando Mansor de Mattos e Victor Leonardo de Araujo. Os autores explicam que a inquietação que os levou a pensar essa obra foi a percepção da pouca disponibilidade de abordagens heterodoxas na área econômica, além da lacuna historiográfica em alguns momentos relevantes para a sociedade brasileira como, por exemplo, nos anos 90, o período do Plano Collor. Uma das medidas adotadas pelo então governo para deter a inflação – e que impactou a vida financeira de milhões de cidadãos – foi a retenção da poupança de quem tivesse depósitos acima de cinco mil reais, convertendo os valores da época.
Victor Leonardo ressalta que o campo da Economia comporta, em sua pluralidade teórica, muitas possibilidades de interpretar a natureza dos fenômenos econômicos, de forma rica e mais relacionada à realidade. Segundo ele, a obra revisita a história econômica do século XX e, a partir disso, traz interpretações alternativas ao senso comum das obras que já existem no mercado editorial da área. “Nosso interesse era publicar algo que não recorresse, por exemplo, às ideias de ‘populismo’ e ‘irresponsabilidade fiscal’ na explicação dos episódios de crises, ou ao seu oposto, a ‘responsabilidade fiscal’, na explicação das recuperações”.
Celso Furtado, o maior economista do Brasil de todos os tempos, já dizia, há décadas, que o fenômeno econômico não se explica apenas por fatores da economia – Fernando Mansor.
O economista explica que o livro traz contribuições a partir das abordagens keynesiana, regulacionista, marxista, sraffiana, kaleckiana, finanças funcionais. “São teorias que trazem diferentes pontos de vista e privilegiam a política como elemento explicativo das escolhas feitas em cada período, bem como as relações externas e a geopolítica. A política econômica é compreendida para além de questões puramente técnicas, nos marcos de disputas internas – e partidárias em muitos momentos -, das circunstâncias externas, e do próprio estágio do debate econômico em cada época”.
A escolha de iniciar a obra na era Vargas foi justamente por ser um momento marcante do período desenvolvimentista. “Em seguida, o texto também abarca a transição e consolidação do período neoliberal, entre o fim da ditadura e o governo Collor. Optamos por terminar no governo Dilma Rouseff, primeiro porque não era nosso objetivo discutir aspectos mais conjunturais, mas também porque, metodologicamente, é sempre mais difícil compreender trajetórias de longo prazo quando ainda estamos vivendo a conjuntura”, completa Victor.
O que a publicação deixa claro, em uma leitura mais atenta, é que a democracia é fundamental para que a sociedade seja bem encaminhada no aspecto econômico – Fernando Mansor.
Ao longo da narrativa dos autores, é possível identificar, durante o período demarcado, dois grandes momentos. “O primeiro, que vai até 1980, coincide com a criação e o desenvolvimento das instituições do Estado Democrático de Direito brasileiro, tendo em vista a viabilização do processo de acumulação de capital, por meio da industrialização, entendida como imprescindível ao processo de desenvolvimento econômico. O segundo, a partir de 1980, coincide justamente com o gradativo desmonte dessas mesmas instituições”.
O docente Fernando Mansor reafirma a importância do esforço coletivo dos pesquisadores da história econômica do Brasil de oferecerem uma interpretação que englobe diversos aspectos dos fenômenos econômicos. “Celso Furtado, o maior economista do Brasil de todos os tempos, já dizia, há décadas, que o fenômeno econômico não se explica apenas por fatores da economia. O cenário externo tem papel importante nas interpretações de cada período no que se refere aos diferentes estágios em que se encontra o desenvolvimento capitalista internacional, em cada momento histórico. Nestes diferentes contextos, observamos como cada etapa se relaciona, seja em termos tecnológicos ou em graus de diversificação setorial e desenvolvimento das forças produtivas”.
No aspecto social, o professor aponta que o livro pretende contribuir na organização e divulgação do pensamento crítico sobre a realidade do Brasil e, em vários capítulos, as questões de desigualdade merecem análises específicas. “É preciso notar que a parte social está englobada na ideia do desenvolvimentismo, pois estes conceitos supõem um crescimento integrado. No governo militar, por exemplo, houve um período marcado por avanço na economia, mas sem inclusão social. O que a publicação deixa claro, em uma leitura mais atenta, é que a democracia é fundamental para que a sociedade seja bem encaminhada no aspecto econômico”.
Fernando ressalta que o capitalismo de livre mercado é uma construção teórica e não tem, a rigor, expressão na realidade. Segundo o autor, o Estado deve atuar tanto para criar formas de impulsionar a economia como regulando os mercados para atenuar as desigualdades, pois a inclusão social é um fator que contribui para os projetos de desenvolvimento. “Por outro lado, a busca pela não intervenção acaba promovendo o efeito reverso, e expande as desigualdades. Talvez esta seja a maior contribuição da publicação: a rejeição da hipótese de que o livre mercado proporciona a melhor forma de organização da economia e da sociedade”.
De acordo com o pesquisador da UFF, o atual momento do país reafirma a importância da democracia para a economia. “Vivemos uma situação extremamente complicada. Os erros cometidos desde o início da gestão da pandemia prejudicaram a estrutura econômica mais do que o normal. Ficou evidente a falsa dicotomia entre “cuidar da saúde” e “cuidar da economia”. Chegamos em um ponto crítico em que a vacina é o único remédio. Por isso, se o leitor compreender a relevância do debate democrático e plural de ideias, e do desenvolvimento com autonomia nacional, o livro causou o impacto esperado”, finaliza.