O território brasileiro é rico em biodiversidade e abrange biomas importantes como o cerrado, os pampas, a caatinga e a Amazônia, sendo essa uma das três grandes florestas tropicais do mundo. É de conhecimento geral a existência do desmatamento de áreas da região, que vêm sofrendo com queimadas e outros métodos de degradação das florestas. Com foco nessa realidade, ONGs nacionais e internacionais intervêm na luta da preservação ambiental através de discursos embasados na ideia de sustentabilidade e não agressão à natureza.
Refletindo sobre esse contexto, a pesquisadora Nazira Camely, natural de Cruzeiro do Sul (AC), desenvolve desde 1999 pesquisas acerca das relações e conflitos inerentes à região amazônica, principalmente no estado do Acre. Sua dissertação de mestrado abordou as quebradoras de castanha na Usina Chico Mendes, em um estudo das relações de trabalho impostas a essas mulheres. Professora associada do Departamento de Economia do Instituto de Economia da UFF, ela faz parte do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Economia e Sociedade Brasileira e coordena o Laboratório de Geopolítica e Estudos Agrários e Ambientais na Amazônia. A professora apurou que essa usina em Xapuri recebeu no ano de 1994 doações do exterior, via ONGs e outras organizações governamentais, quantias que somavam cerca de $ 1.680.000,00, o que chamou sua atenção. “A questão era entender como essas organizações trabalhavam para os interesses do imperialismo, principalmente o estadunidense”, explica.
Dessa inquietação nasceu o tema para sua tese de doutorado intitulada “A geopolítica do ambientalismo ongueiro na Amazônia brasileira: um estudo sobre o estado do Acre”, que posteriormente resultou no livro “Imperialismo, Ambientalismo e ONGs na Amazônia”, lançado dia 1º de outubro na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR) em Porto Velho. “As duas grandes questões que me moveram em direção a essa pesquisa foram: como as ONGs se tornaram novos agentes do imperialismo e porque o problema agrário não estava resolvido em unidades de conservação, dado que a propaganda era de que essas unidades, como por exemplo no caso a Reserva Extrativista Chico Mendes, eram modelos da dita Reforma Agrária da Amazônia”, explica.
Para entender melhor como se desenvolve a pesquisa que deu origem à obra, leia a seguir a entrevista com Nazira Camely:
No livro você cita a expressão “onguismo”. Poderia explicar a que se refere o termo, de acordo com seus estudos?
O conceito de “onguismo” é de um sociólogo espanhol chamado Andrés Piqueras. Ele tem dois textos extremamente relevantes para essa área nos anos de 2000 e 2001 onde expõe que o marco do aparecimento das ONGs na sociedade em geral é com a reestruturação do capitalismo, imposta pelo neoliberalismo, a partir dos anos 80. Então há uma série de demandas da população que essas ONGs vão assumindo em um contexto onde o Estado Social está cada vez mais mínimo – pois a proposta do liberalismo é tirar do Estado a sua função de ser uma entidade que atende a todos em suas políticas públicas e estatais. A principal crítica nesse campo das ONGs como fenômeno, é que elas não têm – e não podem ter, devido à própria característica do capitalismo – um projeto de mudança estrutural da sociedade, sendo apenas um paliativo. Portanto, essas ONGs assumem reivindicações dos cidadãos, colocando-se como uma organização mais competente que o Estado.
Você diz que sua pesquisa é voltada para as relações do imperialismo com as ONGs. Poderia explicar melhor?
No livro, existem dois capítulos que abordam a questão de como as ONGs vão se transformando em verdadeiras corporações em relação aos negócios do meio ambiente. Há um estudo que mostra que isso acontece quando, no ano de 1994, há um workshop na cidade de Miami promovido pela Agência de Ajuda e Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID), onde é apresentado o projeto de conservação global dessa Agência. Eles alinham o discurso no caminho do desenvolvimento sustentável, levantando que é necessário preservar o planeta. Verificamos, no entanto, que isso é uma estratégia do imperialismo, não só estadunidense mas também europeu. A intenção é fazer uma divisão dos territórios de grandes áreas de floresta tropical do mundo – América Latina, Ásia e África. O intuito é repartir os territórios para obtenção de recursos naturais, ressaltando que esse dado está mapeado e a grande questão é que no Brasil ainda somos exportadores de monocultura, ficando a tecnologia nas mãos dos países imperialistas. É nessa dialética que trabalhamos, mostrando mapas e documentos dessas organizações onde se observa claramente seus interesses geoestratégicos sobre o ecossistema amazônico e todas as outras áreas de floresta tropical.
Qual o impacto da atividade dessas ONGs em relação aos povos locais e seu cotidiano?
Primeiramente, é importante esclarecer que estamos falando de ONGs como grandes corporações ambientais – as transnacionais da conservação, conforme denomina Antônio Carlos Diegues da USP -, portanto, não estamos falando de todas as ONGs. As ações dessas organizações interferem muito nas comunidades locais, pois mudam seu modo de vida. Muitas comunidades vivem da pesca, da extração vegetal da castanha, do leite da seringueira e dos produtos da floresta em geral. Essas comunidades estão sendo cada vez mais repreendidas por crime ambiental. O pequeno produtor agrícola no Brasil e as populações que vivem do extrativismo nas florestas são altamente criminalizados, enquanto o grande latifúndio não é, mesmo sendo estes os que sempre desmataram a Amazônia e o fazem cada vez mais devido à queda da fiscalização. Isso faz com que a população se sinta oprimida, tanto pelas atividades do imperialismo agindo via latifúndio e via políticas que visam a retirada de recursos naturais da região, quanto por serem taxados de cometerem delitos.
Até onde vai a atuação dessas ONGs na ocupação do território amazônico?
Para dar um exemplo, eu andei dois dias de barco na Amazônia mais um dia caminhando na floresta e cheguei em um local que tem atividade de ONG. Nas últimas décadas, houve uma reconfiguração do espaço agrário na Amazônia através do estabelecimento de muitas áreas de preservação ambiental sob o discurso de proteger a natureza e sua população. Identificamos, no entanto, que as populações locais estão constantemente ameaçadas pelos grandes latifúndios da pecuária e da monocultura, como no caso dos produtos para fabricar biocombustíveis, por exemplo. Ao passo que a devastação que aconteceu recentemente no Centro-Oeste já está no sul do estado do Amazonas, tanto que os principais municípios amazonenses que tiveram maiores problemas de incêndio atualmente são municípios onde a monocultura de soja já se instalou.
Existe alguma relação política que se constitui entre o estado brasileiro e essas ONGs? Se sim, pode nos dizer qual?
Sim, existe. Hoje em dia existe menos. Porém não se pode abordar o tema de maneira maniqueísta, dizendo se isso é bom ou ruim pois se tratam de dados científicos. O Estado do Acre, por exemplo, sempre foi visto como um modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia. Isso tem muito a ver com a história da luta dos seringueiros contra a ação dos latifúndios no Acre. Lá, essa articulação das ONGs com o governo foi grande por causa do modelo conhecido como “desenvolvimento sustentável”, feito através de acordos com órgãos multilaterais e cheios de graves contradições, em meu ponto de vista. Os maiores financiadores desses acordos foram órgãos como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o próprio Banco Mundial (BM). Diversas grandes empresas e bancos dizem prezar pela natureza, inclusive as depredadoras ambientais, principais responsáveis por grandes danos a vida da população mundial, como a Vale, responsável pela tragédia do rompimento da barragem em Brumadinho. Na Reserva Extrativista Chico Mendes, por exemplo, uma série de políticas ditas sustentáveis foram implementadas, especialmente com as bandeiras das grandes ONGs na questão do manejo dos recursos naturais. Depois de mais de vinte anos dessa política, a pesquisa de campo demonstrou que a vida das pessoas na reserva é de miséria. A propaganda da extração sustentável é, portanto, uma falácia.
No atual cenário, a Amazônia está sob olhares do mundo inteiro. Na sua concepção, qual a capacidade do estado brasileiro no sentido de promover sua preservação?
A meu ver, é função do Estado e de seus órgãos fiscalizadores serem responsáveis pela preservação ambiental. O Brasil tem importantes órgãos nessa área que deveriam cuidar dessa questão, mas como o estado vai resolver esse problema se atualmente os órgãos que podem fiscalizar a atuação dos grandes latifúndios na Amazônia estão sendo frontalmente desqualificados? Essa é uma questão central. A fiscalização já era pequena e pouco eficiente em momentos anteriores e vem piorando. Não se verifica grande interesse sobre a preservação ambiental nesse momento, mas sim em entregar os recursos amazônicos ao grande capital, mesmo que isso custe sua devastação. Aqui em Rio Branco (AC), 33% das crianças foram parar no hospital em decorrência da fumaça das queimadas recentes. Além do fato de que, mesmo com essas políticas propagadas como desenvolvimento sustentável, no Acre, em particular, 18% das crianças sofrem de desnutrição grave. Em escala amazônica, 80% das crianças Yanomamis também sofrem de desnutrição, segundo pesquisa recente da Fiocruz. É algo muito grave.
Quais estratégias considera possíveis para frear o chamado “onguismo imperialista” e fortalecer as políticas ambientais de proteção à Amazônia?
É necessário esclarecer que a nossa pesquisa se opõe à ideia de que as ONGs são as responsáveis pelas queimadas na região amazônica. Entendo que os grandes responsáveis são os detentores do capital ligado ao latifúndio, seja ele de mineração, pecuária, soja ou outras monoculturas implementadas na região. A Amazônia existe pois sua população a preservou. Pesquiso uma região do Acre na fronteira com o Peru, o Parque Nacional da Serra do Divisor, que é um belo manto verde. Existem povos que ali residem há mais de 200 anos – destaco que há comprovação científica de que a Amazônia é povoada há 12 mil anos. A depredação da floresta vem da intenção de implantar políticas que beneficiem o latifúndio em nome do chamado “capitalismo verde”. Quem pode defender a região amazônica são os brasileiros como nação. Nossas políticas ambientais não são ditadas pelos nossos governantes. A proteção da floresta e a obtenção de recursos que beneficiem a nossa população só serão alcançadas no dia em que a nação não mais for oprimida e saqueada pelos imperialismos estadunidense e europeu.