“Mulher vai ao estádio e pergunta quem é a bola”, ironiza o senador Jorge Kajuru (PSB-GO). “Não é o seu caso”, acrescenta, ao se referir à presidente do Palmeiras Leila Pereira durante a CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas no Senado em 5 de junho. O comentário reforça um estereótipo misógino sobre a presença das mulheres no futebol, mas que se reflete no universo dos esportes de modo geral. Nesse sentido, o professor Fabiano Pries Devide, do Instituto de Educação Física da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde lidera o Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero na Educação Física (CREGEF), observa as barreiras para a participação feminina nos esportes, sobretudo nas modalidades olímpicas, desde a inauguração dos Jogos Olímpicos Modernos até a década atual.
“Existiam várias relações de poder em torno do Comitê Olímpico Internacional (COI), na época liderado pelo Barão de Coubertin — reconhecido como o fundador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna —, que tinha essa ideia de que as mulheres não deveriam participar como atletas”, comenta. Foi apenas em 1900, após diversas reivindicações, que as mulheres passaram a participar de algumas modalidades, como golfe e tênis. Essa participação, no entanto, era limitada a esportes de demonstração, sem a premiação com medalhas como os homens recebiam desde 1896. Nos Jogos Olímpicos de Verão daquele ano, realizados em 15 de abril, 241 atletas representando 14 países competiram na primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna.
A inclusão feminina nos Jogos Olímpicos
Autor dos livros “Coeducação e Educação Física escolar: Reflexões introdutórias e sistematização de atividades” (2024), “Estudos das masculinidades na Educação Física e no Esporte” (2021), “Estudos de Gênero na Educação Física e no Esporte” (2017), “História das Mulheres na Natação Feminina no século XX: Das adequações às resistências sociais” (2012) e “Gênero e mulheres no esporte: História das Mulheres nos Jogos Olímpicos Modernos” (2005), Devide explica que a proposta inicial dos Jogos Olímpicos — criados na Grécia Antiga e reinaugurados no final do século XIX com o Barão de Coubertin — era de que as mulheres não deveriam competir publicamente. “Ele (o Barão de Coubertin) não era contra a prática de esportes pelas mulheres, mas contra a participação delas no evento público dos Jogos Olímpicos. Por isso, no que tange à edição de 1896, em Atenas, não encontramos informações oficiais sobre a participação de mulheres nas principais fontes, mas extraoficialmente, no Museu Olímpico em Lausanne, na Suíça, há jornais gregos que noticiaram que uma mulher chamada Stamata Revithi correu a maratona sem ser inscrita, porque não aceitaram a sua participação”.
Logo após o início das competições, surgiu na França um movimento liderado por Alice Milliat pela inserção das mulheres como atletas no Programa Olímpico. “A grande solicitação de Milliat, homenageada nos Jogos Olímpicos de Paris, por ser uma das grandes responsáveis, senão a figura mais importante da inclusão das mulheres no programa olímpico, é que elas pudessem participar da modalidade de atletismo, esporte tido como o mais importante dos Jogos”, comenta o docente e pesquisador. À empreitada da esportista, o COI e a Federação Internacional de Atletismo Amador (FIAA) não autorizaram a entrada das mulheres nas competições: “Existia, e ainda existe, um argumento biologicista que utilizava a anatomia do corpo das mulheres para justificar a sua exclusão de determinadas modalidades e, naquele contexto, o atletismo era uma delas”.
Como compartilha Devide em “Gênero e mulheres no esporte: História das mulheres nos jogos olímpicos modernos”, Milliat não “se deu por vencida” e fundou a Federação Esportiva Feminina Internacional (FEFI) em 1917, responsável por organizar os Jogos Olímpicos Femininos com quatro edições entre 1922 e 1934. Com o mesmo formato dos Jogos Olímpicos, o sucesso do evento paralelo pressionou o COI pela inclusão das mulheres no evento, até que em Amsterdã, em 1928, as modalidades de ginástica e atletismo — nas provas de 100 metros rasos, 800 metros rasos, revezamento 4 x 100 metros rasos, arremesso de disco e salto em altura — passaram a permitir a inscrição de mulheres. Em contrapartida, uma publicação da imprensa ao final da prova de 800 metros rasos trouxe retrocessos mais uma vez.
“A imprensa da época divulgou que algumas mulheres não concluíram a prova dos 800 metros rasos por estarem exaustas. A mídia aproveitou isso para trazer à tona a suposta fragilidade das mulheres nas provas de longa distância. Além disso, o discurso médico da época usava argumentos biológicos para afirmar que as atividades físicas eram perigosas para as mulheres. Para o salto em distância, em altura e com vara, havia argumentos de que as modalidades poderiam prejudicar o útero e, consequentemente, a futura maternidade das mulheres — como se a maternidade fosse o destino de toda e qualquer mulher”, revela o professor. É a partir da Segunda Guerra Mundial (1938 – 1945) que começa a haver uma mudança, já que enquanto os homens foram para a guerra, muitas mulheres passaram a ocupar a esfera pública, incluindo a prática esportiva: “As mulheres passaram a praticar modalidades que antes não treinavam, como ciclismo e natação”.
Preconceitos afetam mulheres e homens
São vários os obstáculos que as mulheres ainda enfrentam nas suas trajetórias esportivas. Como analisa o docente, desde a infância as meninas têm seus corpos protegidos pelos responsáveis, privadas de brincadeiras “ativas” que exigem mais movimentos, enquanto os meninos são estimulados a subirem em árvores, soltarem pipa, jogarem futebol e se arriscarem. “Nessas experiências, eles ampliam o repertório motor de tal forma que se cria uma desigualdade entre eles e elas. Isso é visto quando eles ingressam na educação formal, nas aulas de Educação Física escolar, e apresentam diferentes níveis de habilidades motoras”, explica Devide.
“Infelizmente, a educação física escolar ainda apresenta muitos estereótipos de gênero e preconceitos que separam meninos de meninas, oferecendo conteúdos diferentes para cada grupo. Muitas vezes, por exemplo, a quadra é entregue aos meninos para jogarem, enquanto as meninas ficam às margens. Isso causa um problema, pois ao longo dos anos, as meninas começam a se desinteressar pela aula de Educação Física e a desenvolverem uma timidez corporal, no sentido de acharem que os seus copos não são hábeis ou aptos para algumas atividades, especialmente esportes coletivos”, acrescenta.
Considerando as meninas mais habilidosas, que se destacam na escola e conseguem “furar a bolha” e participar dos jogos com os meninos, várias pedem aos seus familiares para serem matriculadas em escolinhas de esportes. No entanto, mesmo nesses casos, é comum os responsáveis tentarem filtrar a modalidade na qual a criança vai se inserir. “Tendem a direcionar a menina para atividades rítmicas e expressivas como as danças, seja qual for, mas às vezes as meninas querem lutar, jogar futebol ou andar de skate, ainda mais agora, com a visibilidade da Rayssa Leal, vice-campeã olímpica em 2021”, argumenta o Devide. “Além disso, conforme essas meninas desenvolvem habilidades, elas passam a ter seus corpos vigiados porque, treinando, o físico se modifica e elas começam a ter mais massa muscular”.
A skatista brasileira Rayssa Leal, Rayssa Leal, vice-campeã olímpica em 2021 / Foto: Wander Roberto (COB)
#ParaTodosVerem: Rayssa Leal, uma menina de cabelo castanho longo e pontas loiras, vestida com um casaco verde e amarelo com o emblema do Brasil e segurando um buquê na mão esquerda e uma medalha de prata na direita
Por pressão de parceiros ou familiares, algumas atletas acabam não continuando a praticar as modalidades ou praticam sem visar a competição e o alto rendimento. “O esporte para mulheres no Brasil não têm o desenvolvimento que poderia porque há diversas barreiras de ordem cultural e histórica com relação ao gênero, que afirmam essa noção de que o corpo da mulher é mais frágil e, por isso, precisam de proteção. Quando uma menina rompe com esse estereótipo, ela apresenta a possibilidade de outra feminilidade, que prevê força, potência, combatividade à lesão e tolerância à dor”, avalia Devide.
A pressão também afeta os meninos e homens que optam por atividades historicamente consideradas femininas. “Temos o caso do Thiago Soares, primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres. Olha quantas barreiras ele precisou enfrentar para alcançar um espaço de destaque e ser reconhecido mundialmente como bailarino clássico, que a nossa sociedade sempre associa à homossexualidade? Thiago é um dos bailarinos que mais deu visibilidade ao ballet clássico entre homens no Brasil e é exemplo para muitos meninos”, continua o docente sobre o atual diretor artístico e coreógrafo do Ballet de Monterrey, no México.
Situação semelhante acontece nos Jogos Olímpicos com o nado artístico, modalidade que recentemente passou a permitir a participação de homens, nos duetos artísticos, e com a ginástica. “Na ginástica, há provas para homens e mulheres e uma comum é a prova solo. Nessa, as mulheres precisam fazer a sua série acompanhada por música, enquanto os homens a fazem sem. O código de pontuação da ginástica não faz menção à expressividade artística no caso dos homens, mas apenas no das mulheres”. Como um exemplo que desafia o que se espera de ginastas homens e mulheres, Devide comenta sobre atletas da ginástica que tem se apresentado com mais expressividade artística na modalidade destinada aos homens, destacando, por exemplo, Arthur Nory, que, ao aterrizar nas provas solo ou na barra fixa, estende os braços para trás, pose esperada apenas para as esportistas.
Ginasta Arthur Nory em 2023 / Foto: Getty Images
#ParaTodosVerem: O atleta Arthur Nory, sorrindo com os braços esticados para trás e vestido com o uniforme do Brasil, nas cores amarelo e azul e com a bandeira do país no centro, em uma competição
Atletas transgêneros nos jogos
Independentemente da modalidade, um dos grupos que enfrenta mais preconceitos nos Jogos Olímpicos são as pessoas transgêneras — aquelas que não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram. Como explica Devide, em relação às pessoas trans, em geral, o principal argumento utilizado para impedir ou dificultar a participação delas nos esportes de alto rendimento é a questão hormonal. “Anteriormente, o Comitê Olímpico dizia que, no caso das mulheres trans, elas precisavam usar inibidores de testosterona e passar pela cirurgia de redesignação sexual para participar das provas, o que consideramos uma mutilação, porque se uma mulher trans já utiliza os inibidores e é testada mensalmente para saber se o nível de testosterona está nos limites, ela não precisa passar pela cirurgia. Hoje, ainda bem, isso não é mais exigido”.
O professor do Instituto de Educação Física na UFF avalia que um avanço dos Jogos Olímpicos de Tóquio foi justamente permitir a participação de mulheres trans competindo nas provas femininas, como a halterofilista neozelandesa Laurel Hubbard, primeira atleta abertamente transexual a competir no evento. “Mas a Laurel não ganhou medalha, então a presença dela não incomodou. Se ela tivesse subido ao pódio, provavelmente outras atletas fariam a leitura dela como um corpo masculino competindo com mulheres. Então, existe um discurso muito transfóbico envolvendo os Jogos Olímpicos ainda”, aponta o pesquisador.
Halterofilista neozelandesa Laurel Hubbard, primeira atleta abertamente transexual a participar dos Jogos Olímpicos / Foto: Edgard Garrido (Reuters / Direitos reservados)
#ParaTodosVerem: Com um fundo preto, a fotografia mostra a atleta Laurel Hubbard com o braço direito erguido e um sorriso, celebrando seu desempenho após uma prova. A imagem mostra também uma tatuagem de um trevo-de-quatro-folhas verde no seu braço esquerdo.
Entre os jogos de Tóquio e de Paris, houve muita repercussão quanto à participação de atletas trans nas provas. Em 2023, o Comitê Olímpico Internacional transferiu para as federações internacionais de cada modalidade a responsabilidade de estabelecer regras para permitir a inclusão de atletas transgêneros nas competições internacionais e nos Jogos Olímpicos. “Assim, o COI tirou de si a responsabilidade de definir as normas para a participação de pessoas trans nas competições. O que aconteceu em Tóquio foi um grande avanço, mas transferir para as federações internacionais essa responsabilidade causou um retrocesso em várias modalidades. Provavelmente vamos ver poucas ou nenhum atleta trans em Paris, o que é muito ruim para a instituição esportiva, sobretudo, para esse grupo, que já é excluído de várias esferas da sociedade”, observa.
Para o professor, ter homens e mulheres competindo nas provas não significa que as desigualdades de gênero nas Olimpíadas acabaram — como celebrou o COI ao divulgar que as Olimpíadas de Tóquio em 2021 seria a primeira a atingir a meta de equidade de gênero entre os atletas, com estimativa de que 49% dos participantes fossem mulheres. “A equidade precisa estar presente em todos os aspectos do universo esportivo. A realidade ainda é que quem preside os comitês olímpicos nacionais e as federações internacionais de cada modalidade esportiva, quem cobre a mídia esportiva e quem está na beira da pista ou da piscina segurando o cronômetro são, em sua maioria, homens”.
Faltam políticas públicas nacionais, pensando no Brasil, e medidas internacionais que se preocupem com a diversidade de gênero em todos os âmbitos que envolvam os esportes, segundo o líder do Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero na Educação Física. “Temos uma longa caminhada pela frente até conseguir afirmar que existe igualdade de gênero nos esportes olímpicos, algo que deve extrapolar as quadras, as piscinas, as pistas e os ginásios. Igualdade de gênero no movimento olímpico requer que homens e mulheres — cis e trans — estejam igualmente representados e representadas em outras esferas, para além de serem atletas e representarem os seus países”, conclui.
Fabiano Pries Devide é professor do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde lidera o Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero na Educação Física (GREGEF). Licenciado em Educação Física pela Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e doutor em Educação Física e Cultura pela Universidade Gama Filho e pós-doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atua com a temática de estudos de gênero na Educação Física e nos esportes, fundamentos pedagógicos da Educação Física escola e história do esporte. É também autor dos livros “Coeducação e Educação Física escolar: reflexões introdutórias e sistematização de atividades” (2024), “Estudos das masculinidades na Educação Física e no Esporte” (2021), “Estudos de Gênero na Educação Física e no Esporte” (2017), “História das Mulheres na Natação Feminina no século XX: Das adequações às resistências sociais” (2012) e “Gênero e mulheres no esporte: História das mulheres nos Jogos Olímpicos modernos” (2005).