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Filmar é resistir: conquistas e desafios dos mais de 50 anos de cinema na UFF

O cinema está vivo! Essa é a impressão de quem assiste às imagens contadas em relatos pelos muitos personagens que animaram a história da Graduação em Cinema e Audiovisual da UFF ao longo de seus mais de 50 anos de existência. São muitas as cenas, os marcos, os momentos de clímax e tensão, as experimentações, as viradas narrativas… O movimento nunca parece cessar. Recentemente, o curso atravessou um ponto alto de seu roteiro permanentemente aberto e escrito a muitas mãos. Em cerimônia ocorrida em setembro no Congresso Forcine, ele recebeu o título de Patrimônio Cultural da cidade de Niterói.

Para a ex-coordenadora do Bacharelado de Cinema e Audiovisual da UFF e professora do Departamento de Cinema e Vídeo, Elianne Ivo Barroso, “este reconhecimento nos coloca em lugar de destaque especialmente em um momento em que vivemos um desmonte das instituições culturais, a exemplo do fim do Ministério da Cultura e do descaso com a Cinemateca Brasileira, que teve seus funcionários demitidos e está sem funcionamento, pondo em risco o patrimônio audiovisual”. Além disso, ela enfatiza que a premiação vem coroar um longo processo de engajamento de professores, estudantes e servidores no curso: “é um trabalho realmente colaborativo em prol de uma educação próspera e na realização de um audiovisual de qualidade. Todos preocupados com os desdobramentos culturais e sociais desta produção atravessando gerações”.

A pandemia veio comprovar o quanto nos tornamos dependentes do audiovisual e o quanto precisamos discuti-lo para refletir sobre tantas coisas que tangenciam este uso da visualidade”, Elianne Ivo, professora do Departamento de Cinema e Vídeo.

Como ressaltado pela docente, o título leva a marca inconfundível da história dessas mais de cinco décadas de existência. E sobram testemunhos quando o assunto é esse. Antônio Carlos Amâncio, mais conhecido como “Tunico”, professor aposentado do curso, por exemplo, iniciou sua trajetória na instituição como aluno, 50 anos atrás. Ele relata que, como docente, esteve em todas as frentes de batalha política pela consolidação e expansão dos estudos e da prática do cinema na instituição: “tudo motivo do mesmo orgulho de poder fazer, prazerosamente, o meu trabalho”.

O professor conta que o curso em Niterói foi durante muito tempo a única referência para a formação profissional na região metropolitana e muitos dos alunos se estabeleceram no amplo espectro da atividade cinematográfica, divulgando a qualidade do trabalho conjunto, feito com dificuldades e carências. Em menção a uma fala da atual coordenadora, Tunico ressalta que aquilo que os move é o “sobrenome UFF”. Segundo ele, essa marca “traduz nosso esforço em moldar personalidades e profissionais pela livre expressão e pelo compromisso com a melhoria da realidade social”.

O currículo das conquistas acumuladas durante todos esses anos de grande esforço e investimento é enorme. A começar pelas produções de egressos da casa, a exemplo dos renomados cineastas Tizuka Yamazaki, Lael Rodrigues, Rosane Svartaman, Eduardo Nunes, Gustavo Pizzi e Allan Deberton. Elianne Ivo aponta que muitos filmes de ex-alunos foram escolhidos para participar de festivais nacionais e internacionais. Por três vezes, por exemplo, o curso de Cinema foi selecionado para o Festival de Cannes. Outras mostras, ao longo dos anos, também contaram com produções da UFF, como o Festival de San Sebastian, o Festival de Veneza, o Festival de Locarno, entre outros.

Outro destaque importante vai para a criação do Festival Brasileiro de Cinema Universitário, o famoso FBCU, que até hoje é uma referência entre os estudantes de cinema do Brasil. E para a parceria estabelecida, há 10 anos, com a Rede Universitária Internacional de Criação Digital, a RUN, com escolas da França, Canadá, China, Tunísia e Líbano. Na área extensionista, a coordenadora aponta o “Inventar com a Diferença”, projeto de cinema, educação e direitos humanos com dimensão nacional e sob a direção do professor Cezar Migliorin. A partir dele, o curso foi convidado a formar um convênio de cooperação com o Cineduca do Uruguai, através da Agência Brasileira de Cooperação e da Agencia Uruguaya de Cooperación Internacional.

Também na área extensionista, Elliane Ivo menciona os Cineclubes Sala Escura e Quase Catálogo, coordenados respectivamente pelos docentes Fabian Nunez e Nina Tedesco e, por fim, a organização do 4th Brics Film Festival, dirigido pelos professores India Mara Martins e Rafael de Luna, que foi um marco no Cinema da UFF por seus desdobramentos internacionais. Durante esse evento, inclusive, foi lançada a Araci Incubadora de Projetos de Cinema e Audiovisual, que atende docentes, alunos e egressos da graduação e pós-graduação, “apoiando projetos e conectando todos estes elos da ‘família’ Cinema UFF”, enfatiza.

Dentre as grandes conquistas dos últimos anos no campo do ensino, da extensão e da pesquisa, a docente menciona a criação em 2017 do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual, o PPGCINE. Segundo ela, “poucos programas começam com mestrado e doutorado ao mesmo tempo. Em parte, isto foi possível pela projeção da Graduação em Cinema da UFF”. Tunico Amâncio não só concorda com a professora como frisa que esse “upgrade” do curso “marca de forma inequívoca a presença da universidade no campo audiovisual brasileiro: no cinema, na televisão, nas redes sociais e nas instituições culturais, de ensino e pesquisa”.

Apaixonado por cinematografia e muito orgulhoso de todos os êxitos alcançados ao longo dos anos pelo curso, muitos dos quais ele colaborou diretamente para atingir, o professor explica que a “sétima arte” possui um papel-chave no mundo em que vivemos. “Em suas várias janelas, constitui um processo de leitura da realidade capaz de motivar seus espectadores de uma forma muito particular, convocando muitos afetos em sua percepção. Ideias conflitantes, ousadas, realistas ou imaginárias são jogadas para que sejam sentidas, percebidas e discutidas. Um cinema plural representa uma sociedade plural”, ressalta Tunico.

Para o docente, o Brasil vinha atravessando um momento muito rico no tocante à “expressão das leituras, dos anseios e sonhos dos brasileiros, mas entrou em uma fase difícil, graças a um fundamentalismo religioso e um conservadorismo político que invadiu as instituições para paralisá-las e emudecê-las. O Estado se comporta como se fosse o árbitro de uma partida da qual já se sabe o resultado e quer inibir completamente o adversário, usando a descontinuidade e mesmo a censura como argumentos. Para reaver o sentido da história, a hora é de resistir!”.

Em sintonia com Tunico, e quase que em coro, Elianne afirma que no Brasil de hoje, cinema é antes de tudo resistência: “em um mundo onde tudo é imagem, criar nossas próprias narrativas audiovisuais e nos ver representados é fundamental. Não podemos nos contentar em ser meros consumidores de séries e filmes estrangeiros que mostram realidades distantes das nossas. Precisamos nos ver nas telas, nos entender enquanto grupo social, registrar nossa história e nossas inquietações. A pandemia veio comprovar o quanto nos tornamos dependentes do audiovisual e o quanto precisamos discuti-lo para refletir sobre tantas coisas que tangenciam este uso da visualidade. Além disso, o cinema é uma lógica que atravessa nosso modo de experimentar o mundo, nossos afetos e, portanto, é essencial não só fazer cinema, mas também pensar sobre ele. A universidade e os cursos de cinema cumprem esta função e ajudam na transformação do presente e na construção de uma sociedade mais justa”, finaliza.

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