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Projeto da UFF incentiva o debate social sobre violência doméstica

O afastamento social que a população vem vivenciando em função da pandemia de COVID-19, além de modificar profundamente as rotinas familiares, tornou bem mais intensa a convivência diária entre seus membros. Para muitas pessoas, essa tem sido uma oportunidade de estreitar laços afetivos; porém, para as mulheres que vivem relações abusivas, a ocasião está sendo marcada pelo agravamento da violência doméstica, já que estão enfrentando um longo período de isolamento com os agressores dentro de suas próprias casas. Segundo dados da Cartilha de Violência Doméstica e Familiar na COVID-19 publicada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Brasil, estima-se que as denúncias registradas tenham aumentado em até 50% desde que a quarentena começou, em março.

Essa forma de violação dos direitos humanos, que atinge a vida, a saúde e a integridade física e psicológica das mulheres, entretanto, não tem origem na conjuntura atual. É uma questão estruturante de desigualdade de gênero que há muito tempo demanda esforços em busca de soluções efetivas. Com foco nessa dura realidade, o projeto “Porque também temos que falar de violência?”, coordenado pela professora Paula Curi do Instituto de Psicologia, leva o debate sobre o tema para além do universo acadêmico. “O título foi pensado para sugerir um questionamento que, retoricamente, comporta a resposta: temos que falar de violência”, aponta a professora.

Paula explica que a ideia do projeto surgiu após seu primeiro contato, em 2016, com o S.O.S Mulher, programa voltado para mulheres vítimas de violência sexual e doméstica, desenvolvido no Hospital Universitário Antônio Pedro. “Na mesma época participei de um evento do Programa UFF Mulher, desenvolvido pela Pró-Reitoria de Extensão (PROEX), que promove ao longo do ano diferentes atividades relacionadas à questão de gênero, principalmente debates que permeiam desde a qualidade de vida, inserção no mercado de trabalho e enfrentamento à violência contra a mulher. Nesse contato também obtive informações de como funcionam os projetos de extensão da universidade”.

A professora destaca que o trabalho que coordena se baseia em três eixos: a formação, o território e a prestação de serviços à comunidade. “Na formação, o objetivo é inserir a temática da mulher e das violências de gênero. O ensino em psicologia ainda é muito disciplinar e preso aos campos chamados nobres. A intenção, nesse sentido, é construir uma psicologia feminista centrada nas estruturas sociais e de gênero, com ênfase nos direitos da mulher”, ressalta.

A parte extensionista do projeto se forma na ida ao território. “As trocas que acontecem nesses contatos diretos são sempre muito ricas e abrem a possibilidade de as pessoas falarem realmente o que vivem. Através da luta conjunta do grupo com outros projetos do município, foi possível estreitar a interação com o Departamento de Supervisão Técnico-Metodológica (DESUM) da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói (SMS/PMN) – onde os programas da saúde da mulher se situam em Niterói – e a Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres de Niterói (CODIM). Posteriormente, dispositivos da assistência social e educação também se abriram à nossa participação”, complementa.

A pergunta que devemos responder é: como podemos construir uma sociedade mais igualitária onde mulheres possam viver livremente sem serem alvos de opressão, discriminação e violências? Não existe resposta mágica, mas é preciso resistir e fazer informações chegarem às pessoas – Paula Curi

Atualmente, o trabalho conta com 25 alunos, que participam em esferas diferentes de atuação. “O estudante, quando ingressa, por volta do sexto período do curso de psicologia, vai compondo aos poucos as atividades. Quando avança em sua formação de base, o discente pode participar do grupo do ambulatório intitulado ‘Cuidar de Mulheres’, outro projeto de extensão focado no atendimento a vítimas de violência de gênero. Além de prestar os atendimentos psicológicos, os alunos que lidam com pacientes em situação de violência também têm que frequentar grupos de supervisão clínica”, relata Paula.

A estudante Natalya da Silva Jacintho, do décimo período de psicologia, destaca o quanto sua trajetória no projeto foi enriquecedora. “Comecei a participar no quinto período do curso. O estudo no grupo alicerçou fundamentos, auxiliou na construção do conhecimento, e na prática do território fizemos várias dinâmicas, oficinas e tarefas, além do atendimento ambulatorial. A passagem pelo programa foi determinante e colaborou na concepção de uma perspectiva de clínica que não é apenas individual, por tornar evidente a posição da mulher na sociedade patriarcal e a demanda da construção de uma rede singular e pública de enfrentamento à violência”.

Violência doméstica é alarmante no Brasil

Vivemos em um país de diversas desigualdades sociais, inclusive em termos de gênero. Segundo o Dossiê Mulher (ano base 2018), do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP/RJ), a cada cinco dias uma mulher é vítima de feminicídio e, a cada 24 horas, doze mulheres são vítimas de estupro e quatro de lesão corporal dolosa. Paula explica que o índice que mensura as desvantagens e perdas das mulheres mostram o descaso em trabalhar por uma sociedade mais igualitária, livre de violências. “Não ocupamos sequer os cinquenta primeiros lugares no ranking mundial de combate às violências de gênero. Além disto, temos que lembrar que a violência doméstica tem um histórico de impunidade, já que aqui muitas penas foram atenuadas em nome da honra do homem no passado”, destaca Paula Curi.

A professora explica que a violência doméstica e familiar pode acontecer no âmbito de qualquer relação íntima de afeto e se manifestar sob diversas formas – física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A própria Lei Maria da Penha, instrumento jurídico mais fundamental para coibir essas violências, foi criada a partir da história de uma mulher que sofreu agressões a ponto de quase ser vítima de feminicídio pelo seu companheiro. “Mas a criação da legislação não se deu pela preocupação legítima com as desigualdades de gênero, mas sim pela luta da Maria da Penha enquanto mulher e as sanções internacionais impostas diante da repercussão do caso na época”.

Tudo isso mostra que, independentemente da pandemia, o cenário da violência doméstica sempre foi alarmante, conforme os dados consolidados evidenciam. Paula pontua que as violências de gênero são históricas e sociais; portanto, o momento que vivemos apenas escancarou essa outra pandemia que já estava em curso. “Apesar de o coronavírus dar alguma visibilidade à história das mulheres brasileiras submetidas a essa vivência, não se pode esquecer os séculos de patriarcado que fundamentam essas práticas”.

Portanto, vivemos uma realidade em que é necessário enfatizar o distanciamento social para salvaguardar vidas, mas sem deixar de manter a atenção no aumento dos dados de violência doméstica. Segundo Paula, neste momento o vírus agudiza essas agressões, especialmente porque afasta as mulheres de suas redes de apoio e da possibilidade de procurar ajuda nos dispositivos e serviços que podem assisti-las.

“A pergunta que devemos responder é: como podemos construir uma sociedade mais igualitária onde mulheres possam viver livremente sem serem alvos de opressão, discriminação e violências? Não existe resposta mágica, mas é preciso resistir e fazer informações chegarem às pessoas. É essencial efetivamente desnaturalizar as violências de gênero e deixar claro que não é normal conviver com elas cotidianamente, seja na vida pessoal ou nas notícias lamentáveis de que tomamos conhecimento através da mídia”, salienta a professora.

A docente ressalta que o poder público também tem que investir em políticas para as mulheres, bem como buscar formas de diagnosticar problemas e transformar demandas e números em políticas públicas. “As pessoas devem ter conhecimento não só sobre as violências de gênero, mas também de onde ficam os dispositivos e serviços de seu município para pedir ajuda quando necessário. Cabe ao Estado cuidar da população e sustentar toda a rede de enfrentamento, assistência, tratamento e combate à violência. Enquanto cidadãos, temos o dever de cobrar não só a implementação de políticas públicas, mas também a sua operacionalização efetiva e eficiente”, conclui.

Serviço:

https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-07/bolsonaro-sanciona-lei-de-combate-violencia-domestica-na-pandemia

E-mail para contato com o ambulatório “Cuidar de Mulheres”, que presta atendimento psicológico a vítimas de violências de gênero: cuidardemulheres@gmail.com

Cartilha sobre rede de atenção à violência sexual contra a mulher em Niterói

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