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A ciência em disputa: como a internet redefine o conhecimento científico

Maioria das fontes sobre ciência são homens; nas mídias sociais, alimentação e saúde são os temas mais publicados

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e a Universidade Federal Fluminense (UFF) lançam o relatório “A Ciência em Diferentes Arenas”, uma pesquisa que analisa a representação da ciência em jornais nacionais de grande circulação e nas principais redes sociais. O relatório fruto desse estudo foi lançado hoje no site do CGEE.

O consumo crescente de informações através das mídias sociais está remodelando o panorama da comunicação no mundo atual e mesmo a comunicação científica deixa de ser uma prática exclusivamente institucional de universidades, pesquisadores e órgãos públicos. Além dos atores usuais, novos influenciadores surgem e ganham destaque e importância nos espaços online. Essa mudança não só impacta como as informações são compartilhadas, mas também redefine quem detém poder e influência nas redes sociais.

Nesse contexto, o MCTI e o CGEE elaboraram uma pesquisa para diagnosticar as produções discursivas acerca da ciência em plataformas digitais e na imprensa jornalística profissional com o objetivo de entender como representações da ciência são disseminadas nesses espaços.

A Universidade Federal Fluminense (UFF) participa da iniciativa através da pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Comunicação Pública da Ciência (INCT-CPCT), Thaiane Oliveira, uma das coordenadoras da pesquisa, que atuou juntamente com o professor Marcelo Alves, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), e a professora Luisa Massarani, da área de divulgação científica da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).

“Vivemos um momento em que diversas instituições estão sendo deslegitimadas, descredibilizadas e atacadas, entre elas a universidade pública, local onde a maior parte da pesquisa do Brasil acontece. Neste cenário, entender como a ciência é mencionada no ambiente digital é de grande importância, pois nos permite também entender em que pontos precisamos investir para melhorar o entendimento público sobre ciência, tecnologia e inovação”, compartilha Thaiane.

A pesquisa analisa a representação da ciência em dois ambientes diferentes: a mídia tradicional e as redes sociais. Para isso, foram examinados textos dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, além de posts no Instagram e vídeos no YouTube, todos publicados entre julho de 2022 e junho de 2023. Os resultados mostram que, apesar das diferenças estruturais, tanto a imprensa tradicional quanto as redes sociais têm semelhanças na discussão sobre ciência, o que levanta questões sobre como o conhecimento científico é interpretado fora dos círculos acadêmicos.

Para Thaiane, o relatório traz um diagnóstico fundamental para entender quais os temas em ciência, tecnologia e inovação a população mais se interessa, quem são os atores que predominam no ambiente digital e que narrativas são construídas em torno da ciência. “Percebemos que o descompasso entre o que se produz na mídia e o que tem mais atenção nas mídias sociais. Também vimos uma baixa participação de divulgação científica no ambiente digital. Estes são indicativos importantes sobre a necessidade de ampliarmos o entendimento sobre as rotinas das redações de jornais, apoiando na capacitação de jornalistas sobre temas científicos, além de reconhecer profissionalmente o divulgador científico, preparando-o para atuar com mais capilaridade nas mídias sociais”.

Imprensa brasileira reproduz estudos dos EUA

Na análise da imprensa, constatou-se que há uma concentração de conteúdo em algumas áreas específicas e forte presença de instituições dos Estados Unidos, dando pouca visibilidade a países latino-americanos e sul-africanos. Tanto o Globo quanto a Folha tendem a trazer pesquisas de ciência direcionadas à área da saúde, mesmo que não necessariamente sejam de disciplinas médicas.

Outro ponto curioso que a análise levanta é a disparidade de gênero evidente, com 72% das fontes citadas nos jornais sendo homens. Isso pode refletir desigualdades na produção científica ou na seleção de fontes pelos repórteres.

A origem das notícias pode explicar a preferência por estudos estrangeiros. Pouco mais da metade dos conteúdos publicados (50,9%) são provenientes de agências internacionais de notícias tais como BBC, The New York Times, AFP e Reuters. Em seguida estão as redações da própria imprensa (44,5%) e,em terceiro lugar, vêm as agências nacionais (4,2%).

Quando as notícias são produzidas a partir de fontes nacionais, as instituições mais consultadas pela mídia são as públicas, com 77,4%. Organizações privadas (9,1%) e do terceiro setor (3,1%) também se posicionam como fontes recorrentes de notícias.

Perfis comerciais e de pseudociência são mais ativos nas mídias sociais

No contexto das redes sociais, percebe-se uma concentração semelhante de discussões, tanto em termos de áreas do conhecimento quanto de atores que produzem conteúdo sobre ciência.

No Instagram, foram analisadas 103.285 postagens feitas entre julho de 2022 e junho de 2023. As publicações foram produzidas por 22.672 usuários diferentes. Há, porém, uma discrepância significativa de postagem entre os distintos perfis, já que 5% dos usuários respondem por metade das ocorrências.

Também há diferenças em relação ao engajamento dos usuários com as publicações no Instagram. Em média, cada post tem 45 comentários e 1.678 curtidas. A publicação com o maior número de curtidas (866.892 likes) é do ex-presidente da república, Jair Bolsonaro, que trata de um programa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações para incentivar a pesquisa com o grafeno (um material que tem aplicações na área de tecnologia). Por outro lado, há 6.202 posts sem nenhuma curtida.

A pesquisa identificou 39 temas a partir do banco de dados formado, que reúne 41.785 posts. O assunto mais frequente entre os posts está relacionado à alimentação e saúde (27,2%), seguido pelo debate sobre políticas públicas (8,9%) e sobre gênero (6,1%). Em relação às áreas do conhecimento, a rede aborda sobre ciência e tecnologia especialmente na área de Ciências Humanas, que representa 41% dos posts analisados.

Quanto ao Youtube, a pesquisa analisou 27.779 vídeos. Entre esses conteúdos, destacam-se os divulgadores científicos da área de ciência e saúde (31,3%), além dos perfis de universidades, instituições e organizações desse segmento (15%). Os vídeos de Ciências Exatas e da Terra são mais frequentes (27%), embora os de Zoologia (14,3%) tenham mais visualizações.

Ao analisar em profundidade uma amostra aleatória de 320 perfis do Instagram e 320 canais do Youtube, a pesquisa encontrou na primeira plataforma uma presença importante de usuários com caráter comercial (23,7%). Além disso, nessa amostra, canais de ambas as plataformas que produzem conteúdos sobre pseudociências são os mais ativos.

O estudo aponta que tanto na mídia tradicional quanto nas redes sociais, o termo “ciência” é usado comercialmente, às vezes para legitimar produtos ou até mesmo em contextos de entretenimento, distanciando-se do rigor científico. Tendo em vista as disputas de significados envolvendo o conceito de ciência em meios digitais, a lógica das plataformas, que é voltada à busca de visibilidade e engajamento, associada ao fato de que os produtores de conteúdo não estão necessariamente vinculados a normas do jornalismo, faz com que muitas publicações tenham um caráter exagerado ou sensacionalista.

“Vimos também um conjunto de epistemologias alternativas diversas e desinformações científicas, muitas com fins econômicos, que mostram a urgência de estarmos monitorando e acompanhando esse tema de perto e constantemente, visto as inúmeras consequências que as fake news sobre ciência podem ocasionar junto à população”, acrescenta Oliveira.

Esse cenário salienta os novos desafios ligados à divulgação científica que envolvem traduzir a natureza de construção coletiva do conhecimento, que passa por processos longos, em uma linguagem que contemple essas novas plataformas.

“A curiosidade, o uso de memes, de referências próprias do ambiente digital e da cultura pop, são linguagens que podem estimular que o cidadão se envolva mais com temas científicos sem deixar de preservar o rigor e qualidade científica na comunicação feita para a população. Saber usar linguagens e as estruturas próprias da circulação no ambiente digital, como  parcerias com influenciadores, e aproveitar tendências do momento são formas que a comunicação da ciência pode oferecer, em busca de uma renovação, da conquista de novos públicos e contribuindo para a educação científica da sociedade”, conclui a pesquisadora.

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Thaiane Oliveira é Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Laboratório de Investigação em Ciência, Inovação, Tecnologia e Educação (Cite-Lab). Pesquisadora do INCT em Disputas e Soberania Informacional (DSI), do INCT em Administração de Conflitos (Ineac), do INCT em Comunicação Pública da Ciência (CPCT), da Cátedra Unesco de Multilinguismo e da Rede Nacional de Ciências para Educação. Fundadora da Rede Latmétricas. Membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). É membro do Global Artificial Intelligence Network for Social Good, do programa Information For All Programme, da Unesco. Fundadora da rede Latmetrics, consolidada em 2018, que reúne mais de 200 pesquisadores da América Latina para discutir e desenvolver métricas e indicadores alternativos para avaliação da ciência. Tem pesquisado desinformação relacionada à ciência, disputas globais, políticas e epistêmicas sobre a informação científica e os processos interacionais na produção do conhecimento, a partir de uma perspectiva voltada desenvolvimento estratégico da comunicação e tecnologia para enfrentamento à desinformação. Seus atuais interesses de pesquisa são: desinformação relacionada à ciência, disputas sobre a informação e comunicação científica, educação científica e circulação e políticas de avaliação da produção de conhecimento.

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