“Nós discutimos formas de pensar o samba, além da prática cultural, como uma atividade que merece maior atenção da academia”, explica o professor José Valter Pereira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Laboratório de Estudos e Aprontos Multimídia (LEAM-UFF), o docente desenvolve pesquisa sobre o gênero musical que se expande além das notas no projeto de extensão “Tocando meu candongueiro: As matrizes do Samba no Rio de Janeiro”. O projeto é resultado de uma parceria entre o Candongueiro, tradicional casa de samba considerada Patrimônio Cultural Imaterial da cidade de Niterói, e a universidade.
Com o objetivo de discutir as formas de pensar o samba como tema de investigação científica, a proposta do projeto, que funciona como uma disciplina, é refletir sobre o assunto a partir de metodologia e de referenciais teóricos de pesquisa para formar jovens interessados pelo tema. Para isso, além da atuação da UFF, que dispõe do aporte teórico, o projeto conta com a participação frequente do Candongueiro. “A ideia de criar o projeto de extensão é primeiro dar respaldo para convidar pesquisadores para falarem sobre o samba a partir do olhar da academia, e não apenas a partir do olhar de quem faz o samba e está ao lado dos compositores”, explica Pereira.
A presença do samba na sociedade brasileira é uma forma de afirmação da presença negra na construção do Rio de Janeiro e, sobretudo, do país. O samba vive uma luta entre resistência e rendição. Pesquisar sobre o samba é saber mais profundamente a quem os sambistas e as escolas de samba estão acendendo suas velas. – José Valter Pereira
Tocando meu candongueiro
Dentro do projeto, a ideia é convocar pessoas que estão ligadas à pesquisa sobre o samba e sobre a expressão cultural no Rio de Janeiro para que os alunos inscritos no curso tenham acesso a um painel de pesquisadores e seus estudos. Pereira esclarece que a ideia não é oferecer uma metodologia, mas sim a experiência de pesquisadores com suas investigações para que as pessoas tenham um leque de possibilidades para escolher a melhor forma de se pensar o samba.
O curso acontece em quatro momentos, sendo o primeiro no Candongueiro, com a participação de pesquisadores e compositores e a presença do público. A conversa na casa de samba se desenvolve com acompanhamento musical, com o compositor mostrando seu trabalho e cantando seus sambas, além da equipe do Candongueiro, que acompanha a reunião. Os encontros funcionam então como uma “grande roda de samba comentada”.
Alunos reunidos em sala de aula para um dos encontros do projeto “Tocando meu candongueiro: As matrizes do Samba no Rio de Janeiro” / Foto: Acervo pessoal
#ParaTodosVerem Cerca de 15 alunos sentados em roda em uma sala de aula com cadeiras azuis, quadro branco e tela de projeção
O segundo acontece nas salas de aula da UFF, com a presença de um estudioso para falar sobre a sua discussão teórico metodológica. O terceiro é uma discussão específica sobre o gênero musical e o seu acervo, acontecendo no Candongueiro também ou nas quadras de algumas das reconhecidas escolas de samba cariocas, como Portela e Mangueira — o local varia de acordo com a disponibilidade do grupo. Por fim, o curso se encerra com uma conversa com a turma sobre o que foi discutido. Além do trabalho final produzido pelos alunos, que ainda está sendo pensado, a expectativa é ter todo material do semestre registrado, e para isso o projeto conta com a colaboração de uma ONG responsável pela comunicação da disciplina de extensão em conjunto com o Candongueiro.
Samba: Expressão cultural negra
Além de apresentar estratégias científicas para analisar o gênero musical e toda expressão cultural e histórica que o acompanha, uma das vertentes do projeto é entender qual espaço a cultura negra ocupa na academia e como o samba, de origem negra, sobreviveu e se tornou a maior representação cultural de um país que tinha como diretriz o embranquecimento da população. Nesse sentido, Pereira, que desenvolve pesquisa com objetivo de entender como as pessoas negras resistem em um mundo construído pelos brancos, define o samba como “fiador da possibilidade de os negros sobreviverem em um mundo preparado para e pelos brancos”.
“Estudar o samba é uma oportunidade de enxergar como as pessoas negras viviam cotidianamente, inclusive para perceber como essas histórias desmoralizam a história única”, comenta, e retoma a própria pesquisa para entender a trajetória de formação do país. “Quando o Brasil era uma república recém-criada, a política do Brasil era se parecer com a Argentina, que teve uma reformulação da sua população e era um país embranquecido”, explica.
A reforma urbanista do prefeito Pereira Passos (1902 – 1906) transformou a área da Avenida Presidente Vargas e derrubou o Morro do Castelo, afastando os negros para as periferias e para cima dos morros. “O país trabalhou do ponto de vista jurídico, educativo e econômico para limpar a paisagem urbana carioca e criar a visão de que não existiam negros no Brasil”, comenta o professor. Apesar do projeto de embranquecimento planejado pelo governo da capital do país na época, hoje, a cidade tem como principal atividade cultural e turística o Carnaval — a estimativa para 2024 é que o feriado deve movimentar R$ 5 bilhões na economia do município, segundo a Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro.
Professor José Valter Pereira em aula, durante um dos encontros do projeto “Tocando meu candongueiro: As matrizes do Samba no Rio de Janeiro” / Foto: Acervo pessoal
#ParaTodosVerem O professor José Valter Pereira, homem negro usando chapéu azul, óculos de grau de aros pretos, camisa branca com estampa floral azul e calças jeans azuis, em sala de aula com alguns dos alunos do projeto de extensão
O samba é também resultado de mudanças na sociedade, assim como toda manifestação artística. Nessa linha, Pereira relembra o surgimento dos entrudos e dos bailes de Carnaval em salões, práticas de origem europeia que afastavam da folia a população negra e periférica. Nesse momento, “as pessoas negras perceberam que o samba tinha que ser de outra maneira e começaram a fazer um novo samba”. Da urgência de aproximar o Carnaval da comunidade negra, surgem as primeiras canções possíveis não apenas de ouvir, mas também de desfilar, mudança que teve bastante participação dos sambistas da Estácio de Sá, considerada o berço do Carnaval por esse e vários outros motivos.
Segundo Pereira, pensar na relação entre o samba, nascido nas casas de famílias negras cariocas, e o combate ao racismo é importante porque, muitas vezes, “as pessoas pensam que combater o racismo é apenas ter palavras de ordem ou não. Mas não, é estar nos lugares, porque um dos problemas do racismo é a administração dos espaços”. O impacto do samba na sociedade brasileira é uma forma de afirmação da presença negra na construção do Rio de Janeiro e, sobretudo, do país: “O samba vive uma luta entre resistência e rendição. Pesquisar sobre o samba é saber mais profundamente a quem os sambistas e as escolas de samba estão acendendo suas velas”.
A participação do projeto é livre para alunos de dentro e fora da universidade. De acordo com Pereira, “o ponto de conexão é a paixão pelo samba”. O curso, por funcionar como uma prática de extensão, acompanha o calendário escolar da UFF e as inscrições são realizadas pelo sistema da universidade. A primeira parte do projeto ocorreu ao longo do segundo semestre de 2023, com encontros às quartas-feiras com uma turma de 40 pessoas, em sua maioria formada por alunos da instituição, professores da rede pública de ensino e sambistas. A segunda, continuação do ano anterior, começa com o retorno das aulas em abril deste ano.
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José Valter Pereira é professor da Faculdade de Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e é líder do Laboratório de Estudos e Aprontos Multimídia (LEAM-UFF). Atua a partir das conexões: relações étnico-raciais, cultura digital – mídias e suas linguagens e as produções de desigualdades. Tem como preocupação principal as questões em torno das imagens e as suas contribuições para a educação do preconceito.