Há cerca de uma semana, o espancamento que levou à morte de Moïse Mugenyi Kabagambe, imigrante congolês que se refugiou no Brasil em 2011, fez retornar à cena pública a discussão sobre a realidade de vida dos cidadãos negros no país. Mesmo constituindo a maioria em termos numéricos de indivíduos, representando cerca de 56% dos 212 milhões de habitantes do Brasil, essa população é também a mais vitimada: de acordo com o Atlas da Violência de 2021, os negros têm mais do que o dobro de chances de serem assassinados.
Engajada nessa discussão e, para além disso, na transformação dessa realidade de abreviação da vida, ataque e subjugamento dos negros, a Universidade Federal Fluminense vem desenvolvendo ao longo dos anos políticas e práticas que façam frente a essa estrutura social de natureza racista. Dentre essas iniciativas, destaca-se a elaboração de editais de ações afirmativas também em cursos de pós-graduação, como é o caso do Programa de Pós-Graduação em Geografia (Pósgeo), que, no ano de 2020, contemplou o geógrafo e doutorando Diosmar Filho, aprovado no primeiro edital com Ações Afirmativas do Programa.
Segundo o orientador de Diosmar, o professor do Departamento de Geografia Jorge Luiz Barbosa, a turma do doutorando foi a primeira a ser incluída no direito de reconhecimento às diferenças e de afirmação de políticas compensatórias para superação de desigualdades sociais. “Acreditamos que isso significa mais um ato da nossa universidade de enfrentamento e superação do racismo institucional que reproduz relações desiguais profundas na educação superior, sobretudo no âmbito da pós-graduação. Assim, acreditamos, contribuímos para enfrentar a violência do racismo estrutural na sociedade brasileira”, destaca.
Para o doutorando, “num país em que o racismo é a política pública institucional, ser reconhecido como negro, geógrafo e pesquisador é o primeiro grande desafio para acesso aos centros de pesquisa nacional e internacional. Nesse caso, se conseguimos superar essa primeira etapa, já estamos com 50% da pesquisa encaminhada”, enfatiza. Diosmar afirma que no Brasil, para se desenvolver como pesquisador, é preciso superar a racialização no acesso aos centros de pesquisa e aos financiamentos. Segundo ele, isso impacta “os privilegiados do racismo assim como a nós, pesquisadoras (os) negras (os), que passamos a ter acesso às bolsas de pesquisa em quantidade, com o avanço da constitucionalidade nos últimos dez anos das ações afirmativas no ensino e na pesquisa nacionais”.
Tal perspectiva é também compartilhada por seu orientador, segundo o qual as dificuldades para se fazer pesquisa no Brasil são mais profundas para a população negra, em razão de vários motivos. Entre eles, “porque seus temas de investigação raramente se fazem presentes em editais públicos e privados, em linhas de financiamento governamentais e políticas de apoio ao desenvolvimento da produção e da própria divulgação do conhecimento gerado por esses mesmos pesquisadores. Há uma invisibilidade da produção que se origina tanto da desigualdade de acesso a recursos como do não reconhecimento de epistemes distintas das eurocentradas e, evidentemente, da própria posição social ocupada pelos pesquisadores negros e pesquisadoras negras nas hierarquias das universidades”, explica.
Os quilombos urbanos como espaços de resistência negra
A pesquisa elaborada por Diosmar, em parceria com seu orientador, também se propõe a ser uma ferramenta para a transformação da realidade da população negra no país. O doutorando busca desenvolver uma análise socioespacial sobre a constituição territorial da população africana em Salvador, capital do estado da Bahia, uma cidade com quase 80% de pessoas autodeclaradas negras, segundo Censo/IBGE 2010. Mais especificamente, a pesquisa se debruça sobre os quilombos urbanos: espaços que promovem o resgate da cultura negra através de políticas de acolhimento em centros urbanos.
A origem dos quilombos remonta ao período colonial, momento em que comunidades foram formadas para abrigar negros que haviam fugido da senzala ou mesmo de plantações, onde eram escravos. Esses espaços se constituíram como polos de resistência ao sistema escravocrata e, mesmo sendo negligenciadas pelo poder público, sobreviveram ao tempo e a séculos de opressão ao negro e sua cultura no Brasil.
O processo de reconhecimento de quilombos, no entanto, é atravessado por disputas de diversas naturezas. Muito recentemente apenas, por meio do Decreto nº 4887, que data de novembro de 2003, é que foi possível a demarcação das terras dos descendentes de quilombolas. Para a sua regularização, é necessário um trâmite burocrático que passa pela Fundação Cultural Palmares e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra.
O professor Jorge Barbosa explica que o objetivo deste estudo é o de “investigar os processos hegemônicos de supremacia racial no ordenamento do território urbano, sobretudo o conduzido pelas Agências do Estado, que desapropriaram e invisibilizaram terreiros de religiosidade de matriz afro-brasileira e os quilombos na cidade de Salvador (Bahia). O estudo também busca apresentar como os quilombos se refazem na periferia metropolitana e se inscrevem como possibilidades de superação de distinções corpóreo-territoriais de direitos racializadas”.
Em sua pesquisa, Diosmar observa que as cidades brasileiras nas quais vivemos, que são palco de brutalidades como as que culminaram na morte de Moïse Mugenyi Kabagambe, são atravessadas por séculos de criminalização, marginalização e desumanização da maioria populacional, as pessoas negras, indígenas, imigrantes e refugiados não brancos. “Os dados sobre desigualdades urbanas têm cor, raça, etnia e gênero: os estudos apresentam as condições de segregação que resultam de planos diretores de crescimento econômico, responsáveis pela extrema pobreza e empobrecimento das famílias nas cidades, conforme apontam dados sobre desigualdades raciais das Pesquisas Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE de 2010 a 2020. Revela-se a ausência de acesso à saúde, ao saneamento, à moradia, à educação, ao emprego, à renda e ao trabalho, colocando a população negra na condição de criminalizada, sem acesso à terra urbana”.
Apresentando os quilombos urbanos como ferramentas transformadoras do espaço coletivo e das políticas de convivência, Diosmar reforça a urgência da constituição de novos instrumentos de inclusão da maioria demográfica urbana. Há mais de cinco séculos, ele enfatiza, “os quilombos são matrizes de inclusão e sociabilidade econômica e ambiental, e a sua forma cultural é capaz de ordenar espaços urbanos fora da verticalidade neoliberal que torna a vida urbana um ato de consumo e de exploração”, finaliza.