Política e futebol podem parecer, à primeira vista, dois temas sem nada em comum. Entretanto, se pararmos para analisá-los mais de perto, é possível ver uma grande cadeia de inter-relação entre eles, indo desde assuntos concretos, como turismo e infraestruturas urbanas em geral, até questões mais subjetivas, ligadas a processos de construção da identidade nacional de um país. Às vésperas de mais uma Copa do Mundo, a ser realizada na Rússia, o professor Adriano de Freixo, do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF, e a professora do departamento de Antropologia, Simoni Lahud, pesquisadores do esporte, explicam melhor essa relação, revelando, sobretudo, a proximidade existente entre os dois temas aparentemente distintos.
Adriano classifica o futebol como um dos mais importantes fenômenos sociais contemporâneos, que, para ele, está sempre atrelado ao momento do resto do país.“Estádios não se constituem em ilhas isoladas da sociedade e, portanto, as tensões políticas e sociais que acontecem do lado de fora se refletem, direta ou indiretamente, também do lado de dentro”, afirma. Simoni segue na mesma linha, ressaltando ainda que toda vida social tem dimensão política. “O futebol é um fenômeno social como qualquer outro e, sendo assim, é multidimensional”, revela.
Atualmente, os dois professores continuam realizando trabalhos e pesquisas sobre o tema. Autor do livro “Futebol: o outro lado do jogo”, Adriano tem focado seus estudos na atuação dos clubes cariocas no chamado “esforço de guerra”, durante a participação do país na Segunda Guerra Mundial, entre 1942 e 1945. “Podemos citar os casos do Fluminense Football Club e do Clube de Regatas Vasco da Gama, que fizeram campanhas entre seus sócios e doaram aviões ao governo brasileiro para serem usados pela Força Expedicionária Brasileira (FEB)”.
Já Simoni Lahud, atualmente trabalha com projetos sociais esportivos. “Inicialmente, meu intuito era compreender o modo como tais iniciativas contribuem para o processo de socialização e profissionalização de crianças e jovens, que se apresenta também como reforço pedagógico a elas. Junto com alunos de iniciação científica e de Mestrado da UFF, realizamos etnografias e descobrimos também a proliferação incomum de projetos sociais realizados por jogadores de futebol e atletas de outras modalidades. Nos últimos anos, estou pesquisando o porquê dessa proliferação tão específica do caso brasileiro”, explica.
A Copa do Mundo de 2018 na Rússia, marcada para o dia 14 de junho, traz à tona também o debate sobre a importância de um país sediar um evento dessa magnitude, como foi o caso do Brasil em 2014. “Muito se falou em legado da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos em 2016, no Rio de Janeiro. Mas, o que se observa, hoje, são alguns estádios novos, geralmente subutilizados, mesmo que concebidos como arenas”, observa Simoni.
No momento em que o Brasil se propôs a realizar a Copa do Mundo em 2014, o quadro político do país era um, e quando ela ocorreu já era outro.”, Adriano de Freixo
Além disso, Adriano revela que a escolha da sede desses megaeventos tende a refletir as configurações geopolíticas mundiais de determinado período. “Podemos dizer que os megaeventos desta década ainda refletem uma configuração geopolítica da década passada, marcada pela emergência dos chamados grandes Estados do sul e pela articulação desse “Sul Global” em novos arranjos políticos e econômicos como os fóruns Brics e Ibas. Basta listarmos alguns dos últimos grandes esportivos para perceber isto: Copas do Mundo 2010 África do Sul, 2014 Brasil, 2018 Rússia; Olimpíadas de Verão 2008 China, 2016 Brasil; Olimpíadas de Inverno 2014 Rússia; Jogos da Commonwealth de 2010 Índia”. Ainda nessa linha, ele explica. “No momento em que o Brasil se propôs a sediar a Copa em 2014, o quadro político e econômico do país era um, e quando ela ocorreu já era outro. Inicialmente, a perspectiva era a de projetar ainda mais a imagem internacional do Brasil como uma democracia consolidada e de uma nação com enorme pujança econômica que estava conseguindo diminuir suas históricas desigualdades, passando a ser visto pela comunidade internacional como um importante global player.”
Segundo o professor, entretanto, o jogo virou em função do momento politicamente conturbado vivido pelo país. “Tivemos a crise política, o ciclo de protestos de rua que varreu o país entre 2013 e 2016, a instabilidade econômica e, às vésperas dos jogos olímpicos, um golpe jurídico-parlamentar. Ou seja, a possibilidade do Brasil capitalizar politicamente esses grandes eventos, aumentando sua projeção internacional, foi por terra”, afirma.
Muito se especula também sobre o papel de influência da Copa do Mundo – e do resultado das seleções – em campanhas publicitárias de governos da situação. Este tema possui precedentes na América Latina, no período de vigência de ditaduras militares em países como Brasil, Argentina e Chile. Para Simoni, autora do livro “O Brasil no campo do Futebol”, a princípio, não existem maiores relações entre o desempenho das seleções com o resultado eleitoral nas urnas. “A Copa de 2014 mostra, justamente, o contrário, com a vitória de Dilma Rousseff em outubro mesmo depois que o torneio tenha trazido uma das derrotas mais acachapantes da história da seleção brasileira, o 7×1 diante da Alemanha”, destaca.
Adriano ainda lembra os casos em que essa relação foi mais estreita. “Vale lembrar a utilização política por parte de regimes totalitários em vitórias na Copa do Mundo, em 1934 e 1938 (Itália), 1970 (Brasil) e 1978 (Argentina). Por outro lado, o espaço do futebol também tem sido palco de inúmeras manifestações de caráter democrático ao longo dos anos. Um clássico exemplo foi a participação de diversas torcidas na Campanha das Diretas Já, em 1984.”
No Brasil, até aqui, as Copas do Mundo têm sido vividas como rituais nacionais, ou seja, ocasiões em que o ser nacional é imaginado, reconstruído e celebrado”, Simoni Lahud.
Outro fator importante que liga o futebol à política está relacionado a questões culturais, relativas ao processo de construção da identidade nacional de um país. “A partir da Copa de 1938, na França, foi feita uma identificação entre o povo brasileiro e a seleção, como se os brasileiros, tão diferentes entre si do ponto de vista social e cultural, estivessem representados no time. No Brasil, até aqui, as Copas do Mundo têm sido vividas como rituais nacionais, ou seja, ocasiões em que o ser nacional é imaginado, reconstruído e celebrado”, avalia Lahud.
Na opinião de Freixo “O futebol é utilizado para a construção de narrativas identitárias que valorizam a mestiçagem como elemento central na formação da nacionalidade, no nosso caso o modo de jogar – o futebol-arte, do drible, ginga e improviso, em contraponto ao dos europeus, de força, tático e racional – seria decorrência dessa mistura entre brancos, índios e negros no país.”
No início deste ano, um texto do jornalista Tiago Leifert, da Rede Globo, intitulado “Evento esportivo não é lugar de manifestação política” viralizou e foi alvo de muitas críticas nas redes sociais, servindo para popularizar o termo “leifertização” do jornalismo esportivo. Perguntados sobre o tema, os professores ajudaram a esclarecer um pouco mais essa questão. “É, ao mesmo tempo, uma bobagem e um grande desejo”, afirma Adriano. Ele explica que esse tipo de comentário revela a vontade de algumas pessoas e instituições, ligadas a grandes corporações econômicas, midiáticas e esportivas, de transformar o futebol em somente mais uma forma de entretenimento, como beber um vinho ou comer uma pizza. “Esses grupos não enxergam o frequentador dos estádios como um torcedor-cidadão, mas como um consumidor de futebol”.
É inegável que a Copa do Mundo, como um dos eventos mais vistos do planeta, seja o momento de maior glória do esporte. No entanto, para além de sua realização, no Brasil, o futebol permanecerá como parte do cotidiano, sempre integrado aos aspectos políticos e sociais do país, movendo paixões e despertando a curiosidade de multidões. “Esta é uma relação que não deve ser interpretada por conexões simplistas, mas deve ser analisada através dos instrumentos das ciências sociais, já que, de certo modo, toda vida social possui dimensões políticas”, conclui Simoni.