Ser negro no Brasil é motivo para ser enquadrado como suspeito. Isso porque, de acordo com diversas pesquisas, a abordagem policial está ligada ao racismo presente na sociedade. Um desses levantamentos, coordenado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) e intitulado “Negro trauma: racismo e abordagem policial na cidade do Rio de Janeiro”, aponta que 68% das pessoas abordadas andando a pé e 71% no transporte público são negras, ainda que pretos e pardos somem 48% da população do estado. Os dados revelam que os suspeitos escolhidos pela polícia possuem uma cor padrão, gerando um ciclo vicioso no sistema de justiça.
Visando entender como ocorre o racismo na seleção do suspeito em atividade policial, o estudante de mestrado Leonardo Fernandes Hirakawa e a orientadora, professora Verônica Toste, do Departamento de Sociologia, desenvolveram o estudo “Desvendando a cor padrão: O viés racial na seleção do suspeito na Operação Segurança Presente”, que recebe apoio da FAPERJ e foi apresentado no Portal das Ciências Sociais Brasileiras em 2022. A presença do termo “cor padrão” no título não é à toa, visto que Leonardo, além de aluno, também é Major da Polícia Militar, vivência determinante na escolha do tema da dissertação. “Essa é uma terminologia que já foi usada, em termos informais, na comunicação entre policiais. Não importava se o policial era negro ou branco, sempre perguntavam qual era a cor, a característica do suspeito, e então se respondia ‘a cor padrão’. Com isso, já se sabia que era negro. No estudo, buscamos identificar essas relações que estão fora do regulamento, fora da concepção técnica utilizada amplamente”, afirma. Um dos destaque da pesquisa é justamente ser desenvolvida por um integrante da organização, que consegue adentrar na realidade policial para entender de que forma e por que dados como o do CESEC são parte do cotidiano de jovens negros e periféricos.
A dissertação possui como foco a Operação Segurança Presente (OSP), que é problematizada no estudo, pois representa uma privatização da segurança pública. Isso porque define um grupo de pessoas – os residentes e comerciantes de uma área específica – como beneficiários exclusivos. Nesse sentido, ao lidar especificamente com a unidade instalada no Recreio dos Bandeirantes, a pesquisa também identificou a dinâmica estabelecida no local, em que a base se utiliza de grupos de Whatsapp para se comunicar com a comunidade, divulgando informações de interesse da operação e recebendo comunicados de supostos crimes ocorridos na região. Para Verônica, isso “cria um mecanismo, uma linha direta entre policial e morador, na qual o residente pode dar vazão a todo o seu racismo, como ao presumir que as pessoas, por estarem utilizando o espaço público, estão cometendo crimes. É uma subversão total do espírito constitucional, da igualdade, da isonomia, dos direitos constitucionais que estabelecem que a segurança é um direito de todos”. No estudo, resume-se bem a situação da OSP, que é “marcada por relações dicotômicas entre o comum e o particular, o público e o privado, o amigo e inimigo, o policial e bandido, o forasteiro e o morador”.
Além disso, de acordo com o estudo, outro fator que corrobora a manutenção de práticas racistas é a alta demanda sobre o número de abordagens para que o policial seja mantido no posto. “Na operação, você tem que abordar trinta, quarenta pessoas. A partir dessa quantificação de suspeitos, mede-se a eficiência do policial. Vale ressaltar que a questão dos números também é muito valorizada no que diz respeito à quantidade de fuzis e drogas apreendidas, operações, além de mortes em confronto. Quem são essas pessoas que vão ser abordadas? É o preto, o pardo e o pobre. Independentemente de o policial ter uma aversão a pessoas negras ou não, ele vai abordar as pessoas que enxerga como pobres para evitar problemas pra ele. Tal fato é ainda mais intensificado ao levar em consideração que a OSP é um trabalho extra realizado por policiais que precisam da renda, necessidade fortemente atrelada à desvalorização da profissão”, afirma Verônica.
Resultados do trabalho de campo realizado por Leonardo reforçam o argumento de que há um estereótipo quanto à escolha de quem será abordado. Foram 1217 abordagens analisadas, e os dados revelam que o meio de transporte utilizado pelos indivíduos é um fator importante a ser considerado. Isso porque um percentual maior de indivíduos pretos e pardos foi abordado quando andava a pé (68%), em comparação com indivíduos brancos na mesma situação (40%). Uma quantidade maior de brancos (50%) foi abordada quando andava de moto, em comparação com com pretos e pardos (24%). De acordo com o trabalho, isso poderia sinalizar que indivíduos brancos são mais frequentemente abordados por estarem de moto do que pela rotulagem de sua aparência. Soma-se a isso o fato de que a polícia identifica esse meio de transporte como o favorito dos praticantes de crimes de assalto ou roubo. Já os indivíduos pretos e pardos parecem ser abordados exclusivamente em razão de sua aparência física.
Para alterar este cenário, Leonardo acredita que não há terreno fértil para mudanças estruturais nas organizações, mas pensa que a vinculação da academia com o serviço público seria muito benéfica: “acho que o isolamento que o militarismo provoca é uma das grandes barreiras que deveriam ser vencidas”. Ao falar sobre sua experiência pessoal durante o estudo, ele revelou que foi aconselhado a abandonar a carreira policial-militar sob o argumento que estava na profissão errada. “Ainda assim, sempre mantive acesa a chama da mudança, através da busca do saber e da construção de alternativas concretas para os problemas sociais das ‘coisas de polícia’. Posso ter gerado desagrado em uma estrutura altamente hierarquizada e simbolicamente desenhada para a guerra, mas o apreço pela democracia e pela liberdade foi mais forte do que as críticas e nunca me senti tão inserido num contexto profissional como hoje”, finaliza.