O projeto “Pedagogia a Reboque” é uma proposta de estudo sobre instituições escolares, policiais e assistenciais no Rio de Janeiro que busca investigar as práticas pedagógicas presentes em instituições de ensino, segurança pública e assistência social, com foco na administração de conflitos. Pesquisa de pós-doutorado supervisionada pelo professor do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roberto Kant de Lima, coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), e executadapelo antropólogo Marcos Veríssimo, pesquisador vinculado ao INCT-InEAC, a fim de compreender os dilemas envolvendo igualdade e a cidadania por no Brasil contemporâneo.
“Esse método visa compreender como os conflitos são administrados dentro das escolas e das forças policiais, a fim de analisar as pedagogias explícitas que promovem direitos humanos e cidadania. Isto contrasta com as pedagogias implícitas, que perpetuam desigualdades e práticas de violação de direitos”, explica Kant.
A pesquisa aponta que tanto as instituições escolares quanto as policiais desempenham papéis pedagógicos importantes, com práticas que entram muitas vezes em conflito. Na análise de campo, os pesquisadores identificaram que, em situações de conflito, as soluções adotadas pelos atores responsáveis alinham-se frequentemente às pedagogias implícitas, o que reforça as desigualdades sociais e dificulta o avanço para uma sociedade mais justa.
Com base nesses resultados, o projeto busca oferecer subsídios para a construção de políticas públicas e tecnologias sociais que promovam a igualdade e a cidadania, para combater práticas discriminatórias e contribuir para a formação de uma sociedade mais inclusiva. Desenvolvido em parceria com diversas instituições nacionais e internacionais, o Pedagogia a Reboque dá continuidade a um projeto iniciado no ano 2000 e é consolidado com o apoio de bolsas da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Desenvolvimento de criação
O trabalho se concentra na etnografia, ou seja, na descrição de como as práticas de administração de conflitos ocorrem, qual o seu significado para os agentes e de que maneira são conduzidas. “No Brasil, o conflito costuma ser visto de forma negativa, como algo que deve ser suprimido ou pacificado, especialmente no campo do direito. No entanto, o conflito é um fenômeno inevitável na sociedade. Por isso, é fundamental que existam meios competentes e eficazes para administrá-lo”, comenta Kant.
O foco inicial do INCT-InEAC cobria as instituições responsáveis pela administração dos conflitos em interlocução com as pessoas que recorrem a esses serviços. Porém, ao longo do programa de pesquisa, voltou-se também para o ambiente escolar. O professor explica: “Nosso objetivo é promover uma mudança na maneira como os conflitos são geridos, para substituir abordagens violentas por formas discursivas, negociadoras e mediadoras.”
Na perspectiva dos membros do projeto, a segurança pública deve ser voltada para os interesses da sociedade, e não apenas para os interesses do Estado. Nesse sentido, veem a iniciativa como importante, pois traz a necessidade de desconstrução de certos preconceitos dentro das forças de segurança.
Pedagogia não intencional da polícia
O professor Kant de Lima explica que a polícia brasileira, sobretudo a militar, historicamente, estrutura-se a partir de uma lógica repressora. “O próprio símbolo da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro remete à Coroa do rei Dom João VI, que trouxe sua guarda real para o Brasil em 1808. A ideia de uma polícia voltada à proteção do Estado, e não da sociedade, ainda persiste. Nesse contexto, os policiais acabam exercendo uma pedagogia não intencional, mas que transmite valores e práticas muitas vezes distantes do ideal democrático.”

Reprodução: Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
De acordo com os antropólogos, o mesmo ocorre no ambiente escolar, pois muitos professores adotam posturas que reforçam padrões de ensino e disciplina sem questionamento. ”Há uma visão de que ’a sociedade tem a polícia que merece’ ou de que os problemas são culpa dos políticos. Falta a percepção de que esses profissionais, como agentes públicos, têm uma função pedagógica na administração de conflitos e na construção de uma sociedade mais justa”, comenta Kant de Lima.
Além disso, ao olhar a realidade da relação entre a educação e o policiamento no Brasil, é normal que se questione a existência de uma contradição entre a teoria e a prática. “Talvez não seja correto dizer que há contradição. Acredito que existam diferentes teorias que informam práticas às vezes antagônicas, coexistindo no mesmo espaço. Um exemplo é que em todos os documentos da escola, está escrito que estudar é um direito do aluno, e que a escola deve formar sujeitos independentes e preparados para o mercado de trabalho. Essa ideia está presente desde a Declaração Universal da ONU até os documentos mais simples da administração escolar. No entanto, as práticas são outras, porque são informadas não por essa teoria de direitos, mas por teorias que naturalizam a desigualdade brasileira.”

Reprodução: Ana Clara Nascimento / Jornal O Casarão (Universidade Federal Fluminense)
A solução para o problema das contradições no sistema existe?
Segundo a análise, o problema central está numa sociedade marcada por uma ambiguidade muito grande. “Em 1979, o professor Da Matta traz no artigo ‘Você sabe com quem está falando?’ a contradição entre os dois princípios que regem as relações no Brasil: de um lado, a ideia de que todos são iguais perante a lei; de outro, a hierarquia, onde ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’. Essa dualidade está presente tanto nas instituições que administram conflitos, como a polícia e o Judiciário, quanto nas escolas, que deveriam ensinar a igualdade”, aponta Kant.
O resultado, segundo o docente e coordenador do projeto, é que o Judiciário e outras instituições tratam as pessoas de forma desigual, de acordo com seu status social. Essa realidade é algo naturalizado e aceito no dia a dia das instituições.

Reprodução: Converses a Catalunya
Esse padrão de tratamento desigual não se limita ao Judiciário e à polícia, mas também atravessa a educação. ”Vivenciei o caso de uma diretora em que ela repreendeu um aluno e ordenou: ‘Quando você falar comigo, ponha as mãos para trás e abaixe a cabeça’. Na época, achei a atitude rude, mas não dei muita atenção. Porém, dias depois, em uma reunião coordenada pelo professor Kant, ouvi uma colega relatar um comentário de um juiz: ‘Quando um suspeito entra no tribunal com as mãos para trás e a cabeça baixa, eu já sei que é criminoso’”, relatou o professor Veríssimo.
De acordo com a pesquisa, o que acontece dentro da escola não está dissociado do que ocorre no sistema de Justiça. Teoricamente, as instituições educacionais deveriam ensinar igualdade, mas muitas vezes acabam por reforçar a hierarquia e a exclusão.
As perspectivas futuras do projeto
De forma geral, o plano é continuar investindo energia no projeto. A pesquisa atual chega ao fim em breve, e o pesquisador Marcos Veríssimo, em fase final do pós-doutorado, pensa em organizar um livro com alguns textos inéditos e um capítulo final que desenvolva melhor a abordagem sobre a administração de conflitos. “Além do livro, quero continuar com o trabalho nas escolas, pois é algo sobre o qual temos grande retorno. Esse projeto nas escolas é algo que podemos levar adiante, e tem adesão das comunidades escolares”, completa.
Atualmente, a UFF conta com três institutos do INCT nas áreas de História, Física e Antropologia, sendo no âmbito deste último que se desenvolve essa pesquisa. “Nós propusemos a continuidade do trabalho, agora com ênfase maior na transferência deste conhecimento de excelência para a sociedade. Ou seja, não fica só no âmbito acadêmico. Isso se dá por meio de tecnologias sociais, como a administração de conflitos para mudar comportamentos, trabalho em escolas, e a feira de ciência que realizamos, que é muito interessante. Além dos podcasts que o professor Veríssimo produz”, conta Kant.

Reprodução: Conflitos e Diálogos – Pesquisas Escolares / Spotify
A Feira de Ciências “Feira Simoni Guedes de Conflitos Escolares” já acontece há anos e envolve diversas escolas de vários municípios do estado do Rio de Janeiro. O foco é continuar fazendo pesquisa, mas com um direcionamento maior na divulgação e educação científica. A busca é ir além de difundir conhecimento, mas permitir que as pessoas compreendam como consumir os resultados da pesquisa.
Além disso, desenvolver-se junto às mudanças do mundo digital é essencial para o a popularização da prática de pesquisa e a divulgação de seus resultados. Com este propósito, este programa de pesquisa criou, em 2020, o Podcast Conflitos e Diálogos, quando concorreram a um edital do CNPq para fazer uma feira de ciências. Depois, veio se chamar Feira de Ciências Simoni Lahud Guedes, em homenagem a outra reconhecida antropóloga da UFF, ex-professora da rede pública, falecida em 2019. Os episódios do podcast são os produtos da feira. O objetivo do grupo é expandir ainda mais o alcance da ciência desenvolvida. “Ganhamos um prêmio da Associação Brasileira de Antropologia pela nossa atuação na divulgação científica. A ideia é continuar a pesquisa e ampliar nosso diálogo com mais instituições. Um dos últimos projetos que tivemos foi a feira, que considero o mais importante, pois é voltado para a rede pública. Trabalhar na educação cidadã e discutir esses temas com os estudantes têm dado muito certo”, conclui o coordenador.
Acesse aqui o podcast.
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Roberto Kant de Lima possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1968), mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional UFRJ (1978), doutorado em Antropologia pela Harvard University (1986), pós-doutorado na University of Alabama at Birmingham (1990). É Coordenador do INCT-InEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, Coordenador do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC/PROPPI/UFF), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (UVA), Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e do Mestrado em Justiça e Segurança da Universidade Federal Fluminense (UFF), Professor Emérito e Titular Aposentado do Departamento de Antropologia e Professor Aposentado Adjunto do Departamento de Segurança Pública da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense.
Marcos Alexandre Veríssimo da Silva é Doutor pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Universidade Federal Fluminense. Mestre em Antropologia pelo mesmo programa. Especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense. Graduado em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisador associado ao Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), onde coordena o subprojeto Laboratório de Iniciação Acadêmica em Administração de Conflitos (LABIAC). Áreas de interesse: conflitos relacionados às “drogas” (lícitas e ilícitas) e seus usos, mercados, produção e repressão; antropologia visual; e estudos de manifestações artísticas e culturais construídas por grupos sociais mais ou menos definidos. Conflitos escolares. Coordenador do Laboratório Escolar de Pesquisa e Iniciação Científica (LEPIC).