Foi publicado o primeiro artigo com os resultados da pesquisa internacional “Avaliação da Renda Básica de Maricá” sobre os impactos econômicos e sociais do Programa de Renda Básica no município de Maricá (RJ). O estudo foi divulgado no National Bureau of Economic Research (NBER), uma das instituições mais renomadas do mundo na área de economia, e traz percepções importantes sobre os efeitos do programa em aspectos como a renda, o consumo, a saúde, a educação e o bem-estar das famílias beneficiadas.
A pesquisa envolveu mais de três mil participantes e foi realizada por uma equipe de cientistas sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) coordenada pelo professor do Instituto de Economia, Fábio Waltenberg; pelos pesquisadores Sidhya Balakrishnan (Índia) e Johannes Haushofer (Alemanha); e pela ex-aluna da UFF, Roberta Costa (Brasil), que foi ponte para a parceria com o Jain Family Institute (JFI), dos Estados Unidos.
Com o objetivo de analisar os efeitos a longo prazo, o estudo, que já dura mais de cinco anos, é considerado um dos maiores e mais detalhados sobre o impacto de programas de renda básica no mundo, e destaca a importância de avaliar políticas públicas no contexto real e em larga escala, com foco no combate à desigualdade e na promoção do bem-estar social das famílias.
As principais descobertas apontam que, embora o programa tenha sido implementado no contexto de uma série de outras políticas, os efeitos da Renda Básica de Cidadania (RBC) foram substanciais, com impactos positivos em várias áreas da vida das famílias beneficiadas, envolvendo o aumento da renda e do consumo. O apoio do projeto a cidadãos mais vulneráveis através de um benefício sem condicionalidades foi, inclusive, uma fonte de segurança durante a pandemia. Nesse contexto, o impacto macroeconômico provocado pela iniciativa colaborou diretamente para o desenvolvimento local.
RBC de Maricá e metodologia da pesquisa
O RBC de Maricá, implantado em 2015, é um modelo de transferência de renda incondicional, utilizando recursos provenientes de royalties do petróleo. Os beneficiários atualmente recebem um valor mensal de 230 mumbucas – uma moeda digital com valor equivalente ao real – que só pode ser utilizada dentro da cidade de Maricá. Atualmente, cerca de 93.000 pessoas, em famílias de baixa e média-baixa renda, são atendidas pelo programa.
Desde o final de 2019, o programa de RBC já atendia 42 mil pessoas, o que representava aproximadamente um quarto da população de Maricá. Para Waltenberg, “um dos desafios da investigação foi a impossibilidade de identificar o impacto “puro” da política devido a outros programas simultâneos. Além da Renda Básica, Maricá implementava várias outras políticas públicas, como transporte gratuito, bicicletas gratuitas, reformas urbanas, programas de agroecologia e emprego público, entre outros. Portanto, não era uma única intervenção, mas um conjunto de políticas que dificultava isolar o impacto específico da Renda Básica”, pontua o docente.
Para garantir a qualidade da análise, a equipe utilizou a metodologia de “pareamento” entre beneficiários e não beneficiários. A ideia possibilita fazer uma comparação entre famílias que sejam o mais parecidas possível em termos de renda, composição familiar e outras características observáveis, para garantir que a comparação seja justa.
“Nosso método de comparação foi entre beneficiários e não beneficiários da Renda Básica. Os beneficiários eram aqueles 42 mil que receberam o programa, enquanto o grupo de controle era formado por pessoas do Cadastro Único que também faziam parte da população vulnerável, mas não foram incluídas no benefício. Isso porque não faria sentido, por exemplo, comparar uma família de alta renda com uma de baixa renda, ou uma família chefiada por uma mulher negra com outra chefiada por uma mulher branca. A comparação entre grupos semelhantes foi nossa principal estratégia, e ajudou a minimizar as diferenças entre os grupos para atribuir os resultados observados ao impacto do programa e não a outras características pré-existentes dos grupos”, explica o professor.
Impactos no desenvolvimento local, na renda, na saúde e na educação
“Observamos que a renda das famílias beneficiadas aumentou, sem impacto significativo na redução das horas trabalhadas, o que refuta o temor de que um benefício monetário resulte em menos trabalho. Esse aumento de renda foi refletido em um aumento no consumo, indicando uma melhoria na qualidade de vida das famílias beneficiadas. O efeito foi mais pronunciado em famílias chefiadas por mulheres e aquelas com crianças, mesmo o programa sendo direcionado a toda a população do Cadastro Único”, conta Waltenberg.
Os resultados mostraram também que, após a implementação da política de transferência de renda, o número de empregos formais em Maricá cresceu a uma taxa mais alta do que em municípios semelhantes. Isso sugere que programas de transferência de renda podem ter um impacto positivo na criação de empregos, principalmente porque geram uma injeção de recursos na economia local, o que pode aumentar a demanda e criar novos postos de trabalho.
Esse achado está relacionado a um debate importante sobre políticas de transferência de renda. O economista explica que existe uma visão de que a transferência de dinheiro poderia reduzir a motivação das pessoas para trabalhar, mas, ao injetar mais recursos na economia, o consumo aumenta e, consequentemente, pode haver uma pressão macroeconômica para a criação de mais empregos.
“Em Maricá, o emprego informal é bastante relevante, mas a ausência de dados regulares para o município complicou a análise. O que fizemos foi comparar os dados de emprego formal de Maricá com dados de outros municípios utilizando uma técnica chamada controle sintético, que cria uma versão “fictícia” de Maricá a partir de outros municípios, ponderando-os para criar uma trajetória de emprego similar”.
Além disso, esses resultados encontrados são consistentes com o que foi observado em outros programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, que, em municípios menores, também tem efeitos significativos na economia local, reafirmando que os programas de transferência de renda bem desenhados podem ter um impacto positivo no desenvolvimento econômico regional, inclusive com a criação de empregos.
Outro ponto observado no estudo foi um aumento em um indicador de educação de jovens e crianças e maior atenção das pessoas com a saúde, refletido no aumento das consultas médicas. “Isso foi um impacto secundário, embora não fosse o objetivo principal do programa. Uma explicação possível para esse resultado é que muitas das pessoas que recebem a RBC em Maricá também são beneficiárias do Bolsa Família e, embora o programa de Maricá não tenha exigências de comportamentos específicos nas áreas de educação e saúde para que as pessoas recebam o benefício, é possível que os beneficiários integrem práticas do Bolsa Família ao programa da cidade”, analisa Waltenberg.
Outra explicação seria que o impacto sobre a saúde e a educação pode não estar relacionado à existência de condicionalidades, mas sim ao fato de que, ao receberem mais recursos financeiros, as famílias podem melhorar seu bem-estar geral, o que, por sua vez, facilita o acesso a serviços de saúde e educação. “Com mais renda, as famílias ficam menos estressadas e conseguem lidar melhor com questões do cotidiano, como enviar seus filhos para a escola e cuidar da saúde. Esse aumento de “fôlego” pode resultar em uma maior atenção à educação, como o auxílio nas tarefas escolares, e à saúde, como visitas médicas mais frequentes”, comenta o pesquisador sobre a hipótese.
Renda Básica durante a pandemia
Durante a pandemia, Maricá foi uma das poucas cidades onde o emprego formal não só foi preservado, mas aumentou. O volume de recursos circulando na economia, devido aos programas de transferência de renda, permitiu à população ter segurança para seguir as medidas sanitárias recomendadas e, ao mesmo tempo, impulsionou a demanda por emprego, contribuindo para a criação de novos postos de trabalho.
“O que se destacou nesse contexto foi o fato de que Maricá já possuía uma estrutura de transferência de renda bem estabelecida, o que facilitou a adaptação do programa às necessidades emergenciais. Em março de 2020, o benefício da RBC era de R$ 130 por pessoa, mas, com a chegada do lockdown, a Prefeitura de Maricá aumentou esse valor para R$ 300 a partir de abril de 2020, com um pagamento extra no valor de R$ 130 naquele mês, referente à antecipação do 13º salário. Esse aumento foi fundamental para fornecer alívio imediato à população, especialmente em um momento de crise, e seguiu até 2022, quando o benefício foi ajustado para R$ 230”, explica Waltenbeg.
O pesquisador acredita que a principal lição que os resultados da pesquisa indicam é a importância de ter uma estrutura de transferência de renda pronta e expansível para atender a população em momentos de crise. Mesmo que os valores pagos sejam baixos, como o caso da RBC antes do aumento, a possibilidade de aumentar esses valores rapidamente pode fazer uma grande diferença.
“No Brasil, com o Auxílio Emergencial, o governo precisou criar uma estrutura do zero, o que dificultou a agilidade. Em um cenário ideal, os municípios e estados devem ter um sistema de cadastramento e transferência de renda já estabelecido para que os recursos possam ser rapidamente disponibilizados para a população afetada”, complementa.
A pesquisa também observou uma redução nos indicadores de depressão em famílias chefiadas por mulheres, sugerindo que o aumento de renda pode ter contribuído para reduzir o estresse e melhorar a saúde mental, além de, surpreendentemente, constatar um aumento no tamanho das famílias, mas não devido ao nascimento de mais filhos. “Isso ocorreu, possivelmente, pela chegada de familiares de outros municípios ou pela reunificação de famílias separadas. Esse é um resultado interessante que gostaríamos de explorar mais a fundo no futuro” conclui o docente.
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Fábio Domingues Waltenberg é professor Associado de Economia da Universidade Federal Fluminense em Niterói, e pesquisador do Centro de Estudos de Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE). É bacharel e mestre em Economia pela Universidade de São Paulo e doutor em Economia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Desde 2019, coordena a equipe brasileira envolvida na avaliação do programa de Renda Básica de Cidadania em Maricá. Integra a Comissão de Assessoramento para Atualização do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do INEP. É co-editor do periódico Basic Income Studies e editor associado do periódico Estudos Econômicos (USP). Sua pesquisa se concentra em análises econômicas de políticas sociais, com ênfase em educação e políticas de garantia de renda.