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Quem são os cegos, afinal? Pesquisa na UFF traz à tona a invisibilidade das pessoas com deficiência

Seis da manhã. O despertador toca. Uma mão vai até o aparelho, desligá-lo. A outra traz para perto o telefone celular. As mensagens são rapidamente respondidas. Alguns passos para fora da cama e, de repente, um encontro com a imagem de si no espelho. Parece que o descanso não foi suficiente. Do banheiro até o armário são poucos segundos: logo se está escolhendo a roupa do dia e, em seguida, o café da manhã. Dez minutos se passam até a porta de casa se abrir e se alcançar o mundo do lado de fora. Outdoors dão notícias dos produtos recém-lançados do momento. Pessoas correm agitadas. É preciso esperar um pouco para se chegar do lado de lá da rua.

Essa é uma cena clichê. Poderia ser contada por milhares de pessoas, com poucas variações. Poderia ser repetida de trás para frente. De frente para trás. Mas não pelas pessoas com deficiência. Sobretudo as que possuem pouca ou nenhuma visão, num mundo em que a imagem se constitui como peça-chave para a comunicação e locomoção, a construção de si mesmo e a perpetuação de valores sociais. A pesquisadora e psicóloga cega Camila Alves, integrante do projeto de extensão da UFF “Perceber sem ver”, vive na carne uma rotina como essa, para muitos de nós tão óbvia e familiar, de um modo muito menos ágil e fácil. Muitas são as limitações impostas por um mundo tão pouco sensível às diferenças e à diversidade de corporeidades e subjetividades.

Segundo Camila, “o esforço que uma pessoa com deficiência precisa fazer para desenvolver as mesmas atividades que uma pessoa sem deficiência é imenso. Lido com um cansaço real muito sério. O tempo inteiro estou negociando com uma série de impedimentos. Se quero pegar o Uber com um cão guia, tenho que negociar com o motorista, com o desconhecimento da lei… Se quero ler um livro, preciso negociar com o fato de que nem todos os livros que quero e preciso ler existem em formatos acessíveis. Então tenho muitas vezes que entrar em contato com autores e editoras. E invariavelmente muitas coisas que poderiam ser simples acabam se tornando uma missão. Isso é exaustivo, desestimulante, mas é uma realidade que a gente enfrenta”, desabafa.

Camila, que também é professora universitária, alterna sua rotina entre a faculdade de psicologia, o consultório e o tempo dedicado ao doutorado, e diz conseguir realizar tantas atividades no dia por ser usuária de um cão guia. Além disso, ela utiliza equipamentos eletrônicos específicos, como o Iphone e o Ipad, cujos programas lhe permitem usar aplicativos de mensagem e leitura de textos. Todos esses recursos, segundo ela, “vão tornando acessível um universo do qual a gente precisa”. Mas ela ressalta que a sua participação no projeto “Perceber sem ver”, desde o primeiro período da faculdade, foi também fundamental para a construção de toda autonomia que possui hoje.
O projeto, segundo ela, é capaz de reordenar a vida de uma pessoa: “há uma produção de subjetividade que gira em torno da deficiência, que é absolutamente importante. É um projeto capaz de potencializar a vida de uma pessoa com deficiência, e de mudar a maneira como se lida com ela. Foi uma oportunidade muito grande de me construir uma mulher com deficiência de forma mais potente. Foi também a possibilidade de pertencer a uma comunidade em que pudesse me relacionar e aprender com outras pessoas cegas”, conta.

Para a coordenadora e idealizadora do “Perceber sem ver” – em atividade desde 2003 – Marcia Moraes, “perder a visão é um processo que envolve o corpo como um todo, suas relações com o espaço e com os outros. Há um trabalho a ser feito de reorganização do corpo a partir dos sentidos ativos, que não contam mais com a centralidade da visão”, descreve. Esse trabalho, de acordo com ela, é realizado através das Oficinas de Experimentação Corporal, cujo objetivo é articular deficiência visual e corpo, mobilizando-o com ações de sensibilização. Participam das oficinas pessoas cegas e com baixa visão, adultas, que estão em processo de reabilitação, com a supervisão de graduação, e também do mestrado e doutorado, a exemplo de Camila.

“Pesquisar sobre deficiência é, por um lado, analisar como é que nosso contexto social oprime certos corpos, entre os quais, os deficientes. Mas é também, por outro lado, entender que pesquisar nos convoca a lutar por um mundo mais diverso, por isso mesmo mais justo”, Marcia Moraes.

Além das oficinas, o projeto também desenvolve ações em escolas públicas e privadas, com o intuito de mobilizar na luta contra as opressões à deficiência. “É uma questão que concerne a todos nós, pessoas com e sem deficiência”, pondera a coordenadora. Ainda mais se for levado em consideração o momento atual, marcado por retrocessos em todas as áreas da assistência. De acordo com ela, “a precarização das condições de trabalho, por exemplo, incide de forma negativa sobre todos nós. Incide, porém, de forma ainda mais violenta nas vidas daquelas pessoas que precisam de transportes acessíveis, de benefícios sociais para estarem nos espaços citadinos”.

Marcia explica que o estudo que originou e dá vida às oficinas de experimentação, assim como todas as ações do projeto na sociedade, extrapola o universo acadêmico, constituindo uma forma de estar presente e agir no mundo orientada para a diversidade, igualdade e a justiça. Segundo ela, “pesquisar sobre deficiência é, por um lado, analisar como é que nosso contexto social oprime certos corpos, entre os quais, os deficientes. Mas é também, por outro lado, entender que pesquisar nos convoca a lutar por um mundo mais diverso, por isso mesmo mais justo. Afirmar a diferença e a diversidade como nossa condição é fundamental se quisermos de fato construir um mundo menos desigual”, enfatiza.

Nas palavras da psicóloga Camila, “Perceber sem ver” é, “sem dúvida, um espaço de formação. Isso é indiscutível. É um espaço que forma pessoas que vão trabalhar, atuar, pensar, escrever e pesquisar no campo a partir de um modelo social da deficiência, podendo intervir de forma crítica e política nele. Sabemos que no país as estratégias de intervenção nessa área ainda são voltadas para uma perspectiva médica da deficiência, que não condizem com as orientações da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência”.

Além disso, ela acrescenta, “pensar na ameaça que a pesquisa sofre no contexto atual é pensar na redução de um grupo que trabalha na formação de cientistas para atuar no campo da deficiência, de maneira qualificada, séria e com uma sensibilidade analítica. O risco que as pesquisas correm hoje no país é o de se diminuir a discussão, a produção científica acadêmica e de formação de profissionais que vão atuar na área. São as limitações, enfim, que uma sociedade muito pouco sensível impõe. E para lidar com isso é preciso muita criatividade e disposição”, conclui Camila.

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