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UFF Angra dos Reis atua na educação escolar guarani

Há quase 30 anos atuando como educador, o professor e vice-diretor do Instituto de Educação de Angra dos Reis (Iear) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Domingos Nobre, dedica sua vida ao ensino escolar, à formação de professores e à construção de currículos escolares em comunidades indígenas guarani. O projeto liderado pelo docente envolve mais de 100 pessoas, dentre elas, dez professores indígenas e oito não indígenas de escolas estaduais, três professores do curso de Geografia do instituto, 67 alunos indígenas do 6º ao 9º ano e 18 alunos bolsistas da UFF (Pibic, Pibid e Proext) das graduações de Pedagogia e Geografia do Iear. O trabalho faz parte de três ações de ensino, pesquisa e extensão da universidade. O educador também desenvolve há 21 anos, junto aos Guarani Mbyá da Aldeia Sapukai, em Angra dos Reis, atividades de assessoria pedagógica nas áreas de educação e cultura.

Uma das últimas publicações de Nobre é o livro “Entre a escola e a casa de reza – Infância, cultura e linguagem na formação de professores indígenas guarani”, lançado pela Editora da UFF (Eduff) no 2º Congresso de Diversidade Cultural e Interculturalidade de Angra dos Reis, realizado no Iear em novembro de 2016. Nessa obra, o autor analisa os impactos da escolarização entre as crianças Guarani Mbyá com a chegada da luz elétrica e outras tecnologias nas aldeias, além de refletir sobre a construção de currículos diferenciados que levem em conta essas transformações na formação de professores.

De acordo com o docente, a proposta da pesquisa é problematizar com a comunidade os processos de transformação na cultura Guarani Mbyá, presentes no cotidiano da aldeia Sapukai. Tais questões afetam profundamente a infância e mantêm permanente interação com o currículo da escola, abrangendo também os processos de formação de professores indígenas do grupo. Segundo Nobre, o estudo foi feito sob uma perspectiva sociocultural, que privilegia o interculturalismo crítico e utiliza diferentes metodologias de base etnográfica e diversas linguagens, como o vídeo, a fotografia e o texto.

A seguir, o professor Domingos Nobre explica um pouco mais sobre seu trabalho educacional junto à comunidade indígena:

Quais os impactos da escolarização e da chegada da luz nas aldeias, entre as crianças Guarani Mbyá do Estado do Rio de Janeiro?

A escola causou alguns impactos, em especial nas aldeias pequenas, mais afastadas da cidade e com menor grau de contato com o mundo não indígena. Por exemplo, acelerou o uso da língua portuguesa nas comunidades; aumentou o contato com os não indígenas, devido à circulação de profissionais em torno da escola, principalmente professores do Fundamental II, que, em sua grande maioria, não são indígenas; aumentou o uso de novas tecnologias de informação e comunicação, como os computadores e celulares; introduziu novos portadores de textos, como DVDs, livros, revistas, etc. trazendo influências no processo de letramento.

O senhor define a “escola indígena” como uma instituição. Pode explicar esse conceito?

Na verdade, “escola indígena” é uma construção, que ainda está em processo de elaboração. É uma construção teórica sócio-histórica em processo, que se tornou território de disputa, de luta ideológica. Há aqueles que querem fazer dela instrumento de resistência cultural, de preservação da língua indígena, fortalecimento de identidades étnicas e de contribuição a um projeto autônomo, autossustentável e comunitário de futuro e de sociedade; e há aquelas que querem fazer dela uma ponte para cidade, uma travessia para o mercado de trabalho capitalista ocidental competitivo e individualista. Vai depender do grau de protagonismo indígena nessa construção.

Na sua visão, qual é a relação das tradicionais comunidades Guarani Mbyá com a instituição “escola indígena”?

A escola passou a ser um “mal necessário” para as comunidades, mesmo as tradicionais, devido ao contato, à proximidade com as cidades e ao grau de interdependência com a sociedade. Uma necessidade de aprender a língua do “jurua” (não indígena para os Guarani) para lutar pelos seus direitos e não ser enganado nem explorado. A escola pode ajudar os indígenas a conhecer e compreender melhor o funcionamento da sociedade não indígena, pois o convívio é inevitável. Mas, os Guarani Mbyá vêm, a nosso ver, “guaranizando” a escola, imprimindo a ela características próprias, agregando elementos culturais indígenas e modos de fazer impregnados pela sua lógica própria.

Que mudanças o uso de tecnologias, como a energia elétrica, a televisão e o computador provocam nas aldeias?

Um acelerado uso social maior da língua portuguesa; uma mudança em alguns hábitos culturais, incorporando novas atitudes, especialmente entre crianças, adolescentes e jovens, como: ver TV todo dia, assistir futebol, jogar videogame, assistir vídeos em DVDs, ouvir músicas do Brasil e do mundo; e a consequente perda de alguns hábitos culturais tradicionais, entre eles ir quase todos os dias na Opy (Casa de Reza) para rezar, cantar e dançar; reunir-se no centro da aldeia, ao final da tarde em torno da fogueira e ouvir histórias e ensinamentos dos mais velhos (os Xeramoi); e o desuso de brincadeiras tradicionais Guarani. Em contrapartida, ganharam alguns aliados: seus documentos, suas manifestações, suas demandas, mobilizações políticas potencializadas nas redes sociais; textos e projetos digitalizados; a comunicação entre aldeias e lideranças se intensificou, o que facilitou a luta política por seus direitos e a própria organização e divulgação do movimento indígena na luta pela terra, pela saúde e pela educação.

O que podemos entender por interculturalidade?

Interculturalidade é um fenômeno sociocultural do contato interétnico entre duas culturas. A escola indígena é um equipamento intercultural, pois nela se confluem a cultura não indígena e a cultura indígena; a língua portuguesa e a língua indígena. O problema é que as culturas não estão em situação de simetria para as trocas. Há uma enorme desigualdade, um desequilíbrio entre as culturas, uma assimetria. A cultura ocidental é avassaladora e tende a engolir as culturas indígenas. Daí defendemos a ideia de um interculturalismo crítico, que busque nas práticas pedagógicas escolares suprimir essas assimetrias, lutando contra as suas causas. Por exemplo, dando lugar de destaque e prestígio à língua guarani no currículo.

“Aspectos da infância indígena – e, em particular, da infância guarani – têm sido objeto de poucas pesquisas no Brasil, razoavelmente esporádicas e pontuais”. O que motivou o senhor a se aprofundar nesta pesquisa?

Trabalhei um longo período, aproximadamente 15 anos, com a Educação Infantil. Um grande interesse nasceu quando conheci as crianças Guarani Mbyá, em 1995, e a concepção de infância sagrada que eles têm. Uma criança Guarani Mbyá não é um ser que virá ainda a ser, quando crescer. Para os Guarani, uma criança já é um ser completo, pois no corpo dela veio habitar um espírito que é maduro e que só o rezador, na cerimônia sagrada do batismo (Nhemongarai) revela, nominando-o. Os nomes Guarani Mbyá são, portanto, os nomes dos espíritos que aqui vieram ter entre nós, no corpo das crianças. Isso é fascinante e tem muito a nos ensinar.

“O objetivo do livro é refletir na formação dos professores, a respeito da construção de currículos diferenciados que levem em conta essas transformações”. Quais seriam esses currículos diferenciados para a formação de docentes?

Currículos de formação que levem em conta as mudanças ocorridas nas crianças Guarani Mbyá e também nas concepções que eles próprios têm de suas infâncias. Para isso, é necessário adotar uma perspectiva da Sociologia da Infância que interprete essas transformações como construções sócio-históricas. Importante também estudar as especificidades culturais que as crianças indígenas demonstram ter em seus processos de aprendizagem; em suas formas próprias de relações sociais, baseadas em sua estrutura de organização social tipicamente Guarani Mbyá, baseada no intenso convívio nos “joapygua” (famílias extensas); sua cultura imaterial, rica em jogos, brincadeiras tradicionais, cânticos, no aprendizado do artesanato, no convívio com a natureza, etc.

No papel de educador, como avalia a sua participação na formação de professores para as comunidades indígenas como a Guarani Mbyá?

É um papel político, que advém do compromisso social que a universidade pública, no nosso caso o Instituto de Educação de Angra dos Reis, tem com as comunidades tradicionais da região que incluem os Quilombolas e os Caiçaras. São povos que têm o direito de construir propostas próprias de educação escolar diferenciadas, específicas e interculturais, tais como prescreve a legislação.

Qual é a importância de formar professores capacitados para atuar em comunidades indígenas como a Guarani Mbyá?

É fundamental, no sentido de que os próprios guarani possam assumir a docência nas escolas das aldeias. Numa perspectiva de médio prazo, há que se pensar numa Licenciatura Intercultural Indígena para habilitar os professores Guarani a assumir os ensinos Fundamental II e o Médio. Nossa luta, a curto prazo, é implantar o Curso de Magistério Indígena para habilitá-los ao exercício da docência no Fundamental I. O Rio de Janeiro está historicamente muito atrasado em relação à implantação de políticas públicas efetivas e estruturantes de educação escolar indígena.

Seus estudos serão referência para as pesquisas sobre educação escolar e infância guarani no Brasil e em países vizinhos, como Argentina e Paraguai. Como analisa a importância de sua pesquisa para o desenvolvimento de outros trabalhos na América Latina?

Há comunidades Guarani em oito estados brasileiros, além de Argentina, Paraguai e Uruguai. Os estudos sobre infância têm crescido nos últimos anos. Penso que o trabalho trouxe uma contribuição ao debate de como se organizam e produzem cultura as crianças indígenas Guarani Mbyá, o que interessa aos programas de formação de professores indígenas nestes países. Pensar currículos de formação de professores que levem em conta essas especificidades é um desafio para o continente.

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