Para desvendar o passado, cientistas de diversas áreas se baseiam em vestígios deixados por diferentes comunidades não mais existentes na tentativa de entender a forma como esses grupos viviam e os rituais que estabeleciam. Compreender o modo como se organizavam é importante para perceber como as diferentes populações se desenvolveram até o momento. Uma maneira de estudar essas sociedades é por meio das pinturas rupestres, registros geralmente feitos em rochas que representavam a vida cotidiana e as atividades desenvolvidas por essas comunidades. O assunto foi objeto de pesquisa do projeto “Arte rupestre em sítios arqueológicos brasileiros: Implementação de metodologia cronológica inovadora e não destrutiva para datação 14C-AMS”, da professora do Departamento de Geoquímica da Universidade Federal Fluminense (UFF) Carla Carvalho.
A docente, doutora em Física Nuclear pela instituição, desenvolve estudos relacionados a métodos cronológicos utilizando elementos radioativos para datação e explica que chegou à Arqueologia depois de um longo caminho de pesquisas multidisciplinares. Utilizando um acelerador de partículas — equipamento capaz de acelerar partículas carregadas —, a professora desenvolve seus projetos de estudo por meio da datação do radiocarbono — isótopo natural radioativo do elemento carbono —, utilizando a técnica de espectrometria de massa com aceleradores (AMS, na sigla em inglês), método que usa o acelerador para contar átomos desse elemento. As pesquisas se desenvolvem no Laboratório de Radiocarbono da UFF (LAC-UFF), onde é uma das coordenadoras.
O projeto com as pinturas rupestres foi elaborado a fim de implementar novas estratégias para a datação delas e se baseou no trabalho desenvolvido por pesquisadores franceses do Laboratoire de Mesure du Carbone-14 (LMC-14), na Université Paris-Saclay, que aprimoraram a datação em amostras de crosta carbonáticas sobre pinturas rupestres da Namíbia. “Esse método não danifica o patrimônio, ou seja, é uma técnica não destrutiva, que utiliza o escorrimento do material que recobre a pintura, então resulta na idade que chamamos de terminus ante quem, o limite até o qual se tem certeza que aquela pintura estava presente”. O projeto foi submetido ao Edital Pós-Doutorado no Exterior (PDE) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sendo aprovado e permitindo à professora passar seis meses com os colaboradores franceses a fim de trazer conhecimento e implementar a técnica no LAC-UFF.
Como explica a pesquisadora, a datação com base no isótopo depende da presença desse elemento na amostra. Por ser uma substância naturalmente radioativa, há o decaimento da sua atividade e, a partir da meia-vida — tempo necessário para que metade da massa do elemento se desintegre — do carbono-14 e com a informação do teor da substância em uma amostra, é possível estimar há quanto tempo não houve mais troca de carbono com a atmosfera. “Isso pode beirar os 50.000 anos, que é a faixa de validade para datação do carbono-14”, afirma. Nesse sentido, a docente esclarece que não é possível datar dinossauros, por exemplo, a partir do estudo do decaimento do 14C, cuja meia-vida é de 5.730 anos, porque esses animais caminharam pelo planeta há muito mais tempo. No entanto, existem diversas coisas que podem ter a idade estimada com esse método; entre elas, as artes rupestres.
Processo de extração de oxalato de cálcio (CaC2O4) / Créditos: Arquivo pessoal
Na maioria das vezes, as obras são realizadas com material orgânico, como sangue ou ovos, que guardam resquícios de carbono, tornando possível a datação, mas há situações em que as imagens gravadas nas rochas foram feitas utilizando minerais. “Nesses casos, não consigo medir o carbono; então, não é toda pintura rupestre que posso datar”, declara. Para estimar há quanto tempo uma pintura que contenha matéria orgânica foi feita, é preciso raspar uma parte do pigmento, o que interfere no patrimônio; por isso, a alternativa encontrada foi utilizar as crostas de oxalato de cálcio (CaC2O4) produzidas por líquens ou bactérias que realizam troca de carbono com a atmosfera e recobrem as pinturas. “Você raspa essa crosta e então não precisa raspar especificamente em cima da pintura”.
A coordenadora do Laboratório de Radiocarbono compartilha que quando aprendeu a extração, testou com algumas amostras brasileiras todos os procedimentos, “desde a caracterização da composição, para identificar se tinha ou não oxalato, para prosseguir com a extração dele, a eliminação de calcita e outros carbonatos que não nos serviam e da matéria orgânica que não queríamos como contaminante”. Como afirma a professora, o contato com pesquisadores nacionais e internacionais com outras especialidades é importante não apenas pela troca de material, mas também de conhecimento e tecnologias.
Professora Carla Carvalho no Laboratório LMC-14 (Paris-Saclay, França) / Créditos: Arquivo pessoal
O próximo passo é expandir a pesquisa e continuar com o intercâmbio de informações e ferramentas. A docente destaca a necessidade de fortalecer laços entre pesquisadores da Arqueologia interessados em estudar a idade de artefatos a partir da técnica de datação por 14C-AMS no LAC-UFF, primeiro laboratório na América Latina e único em nível nacional com infraestrutura completa, desde a preparação da amostra até a medição, análise e calibração para entrega de resultados. Carla também comenta com entusiasmo que frequentemente ela e sua equipe estão auxiliando pesquisadores parceiros a fazer a preparação de amostras e conversão em grafite para datação com uso do acelerador de partículas da universidade: “O acelerador é um equipamento muito caro, não há necessidade de ter mais de um quando podemos fazer tudo em parceria e receber amostras em grafite para medir no intervalo entre uma medição e outra, funcionando como uma rede cronológica. Estamos fazendo medições em menor escala se comparado ao que é feito em países estrangeiro, porque ainda não temos equipamento igual, mas é importante fomentar a interação para utilizar melhor os recursos públicos e também entrelaçar pesquisas. Acredito que não se faz pesquisa sozinho”.
A investigação segue ainda em andamento, mas alguns resultados parciais apontando o sucesso da extração do oxalato de cálcio já foram apresentados na II Conferência Latino-Americana de Radiocarbono, que aconteceu na Universidad Nacional Autónoma de México neste ano. A professora conta que o trabalho foi recebido com entusiasmo e muitos pesquisadores demonstraram interesse em enviar amostras para o laboratório, incluindo estudiosos de outros sítios arqueológicos brasileiros, como os da região nordeste do país, baú que guarda vários registros de pinturas rupestres. “Acho que a ideia é fortalecer o conhecimento dessa área de pesquisa, que é atravessada pela cronologia”, afirma. “Temos que abrir esse campo, porque já tem gente fazendo isso no mundo. Quando nós aprendemos uma nova técnica de extração de carbono para a datação, começamos a estabelecer esse tipo de estudo aqui e atendemos a um grande grupo de pesquisas em Arqueologia, que podem se valer dessa oportunidade para conseguir fazer as datações e ter mais informações dos sítios”, conclui.
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Carla Regina Alves Carvalho é Bolsista de Produtividade em Pesquisa CNPq – Nível 2 e Jovem Cientista do Nosso Estado – FAPERJ (2018). Doutora em Física Nuclear pela Universidade Federal Fluminense (UFF), docente no Departamento de Geoquímica da UFF, onde desenvolve vários projetos de pesquisa no Laboratório de Radiocarbono (LAC-UFF) e no Laboratório de Radioisótopos Aplicados ao Meio Ambiente (LARAMAM), atua como líder do grupo de Física Nuclear Aplicada a Estudos Cronológicos do CNPq. É membro titular eleito da Comissão de Área de Física Nuclear e Aplicações (NUC) da Sociedade Brasileira de Física (SBF). Atua também como membro do Projeto INCT-FNA. Tem experiência na área de Física Nuclear Aplicada, sendo os principais temas de atuação: geocronologia (14-C-AMS and 210Pb), determinação da fração biogênica por 14C-AMS, contaminação por combustíveis fósseis, mudanças paleoambientais, traçadores radioativos, radioecologia, radioproteção ambiental e radioatividade natural.