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A brutalidade nossa de cada dia: estudo da UFF sobre milícias aponta naturalização de uma sociabilidade violenta no Rio de Janeiro

Em uma rápida busca na internet do termo milícias, são exibidas na tela um milhão e seiscentas mil citações. O número fala por si. Nos últimos anos, no Brasil, as organizações criminosas conhecidas como “milícias” cresceram exponencialmente, assim como sua publicização no espaço público e midiático. O que esses números revelam, para além da óbvia constatação de expansão desse fenômeno no contexto social? Qual a importância de se compreender as razões que possibilitam a emergência de tamanha articulação de poder? E o que essa sociabilidade violenta aponta sobre quem somos nós e a sociedade que temos construído para viver?

Essas e outras questões foram amplamente debatidas em conversa com dois pesquisadores da UFF que têm se dedicado a entender o que são, como funcionam e se articulam as milícias na cidade do Rio de Janeiro: Fabio Reis Mota, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) e pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) e Leonardo Brama, pesquisador do InEAC e mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF.

Abaixo, reproduzimos as perguntas que elaboramos para abordar a temática juntamente com os pesquisadores, seguidas das respostas, que foram pensadas e organizadas em conjunto por eles.

O que são as milícias?

Em primeiro lugar devemos esclarecer que há uma diversidade de formas de organização e atuação do que se denomina genericamente e muitas das vezes abstratamente de milícia. Torná-la uma pauta pública e política veio, paradoxalmente, produzir uma aderência de um exército de excluídos aos grupos formados sob a categoria de milícia e milicianos. Por exemplo, na Zona Oeste esse processo de adesão e expansão às organizações definidas como milicianas cresceu de forma espantosa nos últimos 10 anos particularmente.

Logo, devemos ter em mente a amplitude que o termo pode representar: desde um grupo de ex-policiais que se organizam para “colocar ordem” local até grupos fortemente armados e logisticamente bem organizados que atuam em diferentes frentes, desde a econômica, com a grilagem de terra, na manutenção de empresas de natureza diversa (terraplanagem, comércios lícitos e ilícitos, etc) até as entranhas do sistema político e judiciário. O ser miliciano se tornou uma identidade política e pública para muitos dessa massa de excluídos que veem nela um espaço para aquisição de bens materiais e simbólicos – como poder, prestígio, reconhecimento.

Como elas se diferenciam de outras organizações criminosas?

Suas diferenças são muitas com relação às outras organizações criminosas, sejam elas as institucionalizadas que estão no interior do estado, da política e do judiciário, ou as que estão à margem do estado, tal como o tráfico de drogas. A principal diferença quanto a esta última modalidade é a capacidade da milícia em produzir nos territórios ocupados uma dimensão moral positiva (ou menos negativa) acerca do pertencimento à identidade de universo miliciano.

Ser traficante significa portar uma identidade negativa, estigmatizada e até mesmo deteriorada, ao passo que, em muitos lugares, a identidade de um miliciano pode comportar dimensões positivas e valorizadas moralmente pelos moradores, familiares, amigos, bem como pelas redes de interação mais ampla de um bairro etc. E quanto à estrutura, as maiores e mais influentes milícias se assemelhariam muito mais às dinâmicas e práticas de grupos mafiosos propriamente ditos, em virtude de sua influência no interior do poder estabelecido (político e judiciário) e da forma como atuam nos diferentes mercados e com suas distintas mercadorias simbólicas e materiais.

Como agem as milícias nas comunidades que controlam?

Há diferenças substanciais do histórico delas se tomarmos a Baixada Fluminense e a Zona Oeste, por exemplo, o que se expressa nos modos como regulam os espaços mediante uma governança pela violência. A violência no Brasil, como já há muito tempo um sociólogo importante, Luiz Antônio Machado, diagnosticou é uma linguagem que permeia as teias das relações sociais no âmbito público e privado. A sociabilidade violenta é o modo pelo qual as milícias, de um modo geral, tornam suas atuações legítimas.

Depois, elas agem como promotoras de bens materiais, como “gato net”, gás, comércio, água, etc., e simbólicos, como a proteção, segurança, etc., na conformação de um universo de consumo que lhes possibilita a construção da legitimidade do poder pelo e no capitalismo. E, por fim, elas agem como filtros de produção de identidades públicas e “cívicas” para sujeitos histórica e estruturalmente excluídos do mercado e do espaço público da cidadania.

Nesse sentido, tanto a milícia como o tráfico são dispositivos que se tornam meios de visibilização e de promoção de status social a quem se encontra absolutamente fora do espaço público e cívico da cidadania. As milícias, portanto, agem como filtro de controle social em ambientes nos quais os organismos estatais possuem pouca aderência ou agem excluindo e produzindo a desconsideração dos direitos fundamentais, como a eliminação de vidas de cidadãos, a exemplo da atuação policial no Brasil.

Como você definiria o funcionamento da milícia no Rio de Janeiro, quais as forças que a compõe e como ela se articula em meio aos poderes?

Não existe um funcionamento padronizado; isso depende muito dos grupos e do tipo de relações que tecem a rede de cada um deles, aliás, do capital político em jogo. Claramente, quanto mais essas relações se encontram imersas nas estruturas oficiais do Estado (parlamento, judiciário, dentre outros), maior a organização e o poder de mando e controle dos territórios.

Não devemos deixar de mencionar que anos atrás políticos de grande envergadura e importância no meio manifestavam apreço às milícias e apontavam elas como formas legítimas de enfrentamento e substituição do poder do tráfico de drogas em muitas regiões do estado do Rio de Janeiro. Como já enfatizamos acima, as milícias, se comparadas ao tráfico, aportam uma identidade positivada em muitos dos meios nos quais atuam. Portanto, as formas de uso da violência em seus múltiplos aspectos (físico, verbal, moral, etc) e a promoção da (in)segurança e oferta de proteção (real ou ilusória) operam juntas, uma estimulando a outra, compondo um círculo vicioso de reciprocidade que alimenta o negócio.

O poder das milícias vem aumentando significativamente no Rio de Janeiro, como atestam vários estudos sobre o tema, incluindo um levantamento feito pelo Ministério Público de que, em menos de 10 anos, dobrou a quantidade de comunidades controladas por milicianos. A quais fatores se deve esse cenário?

Há muitos fatores em jogo. O primeiro é que as milícias foram vistas e tomadas como mecanismos de solução de problemas de controle e de ordem social em muitas regiões nas quais ganharam força, seja pelas próprias autoridades públicas, ou pelos moradores dessas localidades. Segundo, é que elas atuam como forma de promoção de visibilidade pública e de produção de “identidades cívicas” para uma massa de gente que tem seus direitos diuturnamente vilipendiados pelo próprio estado nas filas do hospital, pelo tratamento da polícia, pelo desrespeito nas escolas, dentre outros dispositivos de políticas públicas.

Ela é, em grande medida, consequência da má conformação de nosso espaço público da cidadania, como apontam os antropólogos Luís Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto Kant de Lima, e do mesmo modo resulta da naturalização em nosso universo de sociabilidade da violência como uma gramática política e moral muito entranhada em nossas cabeças e corações. Embora em muitos países a violência exista, no Brasil ela é uma linguagem apropriada institucionalmente pelo Estado contra os cidadãos e, por conseguinte, também é um instrumento de bordo para os cidadãos navegarem nas teias das relações sociais, conformando um verdadeiro estado hobbesiano de natureza da luta de todos contra todos. Por fim, como uma atividade capitalista lucrativa, as milícias se tornam meio de inserção desses excluídos ao mercado e aos bens materiais e simbólicos do mesmo.

Como fazer frente ao crescimento delas?

Obviamente, sem medidas que partam de uma vontade concreta de resolver o problema das milícias por parte dos mais influentes nos poderes legislativo, executivo e judiciário, dificilmente se terá como fazer frente ao crescimento delas. Nos primeiros momentos em que o termo “milícia” se espalhou na mídia, vários representantes estatais defenderam publicamente as milícias, legitimando de fato o fenômeno.

Atualmente isso não ocorre (ou, se ocorre, as declarações tendem a ser mais veladas), mas as prioridades da agenda da segurança pública não mudaram muito, pois na recente intervenção federal, não obstante o crescimento das “áreas dominadas pelas milícias”, o foco sempre foram as “áreas dominadas pelo tráfico”. Algumas das dezenas de medidas propostas para o enfrentamento das milícias (a tipificação do crime de milícia, a realização da GAECO, etc) podem até ter produzido mais prisões, mas pensar em resolver o problema com mais prisões é enxugar gelo.

E continuaremos a “enxugar gelo” se não conferirmos definitivamente ao nosso espaço público e político critérios republicanos, afeitos às sociedades com tradição democrática sólida. Nos anos 80 e 90, combatíamos o tráfico; do ano 2000 em diante, as milícias, e assim sucessivamente. Dessa forma, estaremos a combater um “inimigo” que se retroalimenta das desigualdades flagrantes no universo jurídico, social e simbólico. Afinal, no lugar de combatermos a desigualdade, reafirmamos nossos viés anti-igualitário e nossa gramática da violência em prol de absolutamente nada. Vivemos, e talvez viveremos, num eterno “enxugar gelo” se tais questões não forem enfrentadas de frente e com muito vigor pela sociedade brasileira.

Como você vê a atuação das milícias no cenário político brasileiro atual?

De modo geral, a atuação das milícias sempre representou um recurso político-eleitoral muito importante, e isso acontece desde o século passado, com os grupos de extermínio da Baixada Fluminense. Como os estudos do sociólogo José Cláudio Souza Alves mostram, bem-sucedidas carreiras de matadores se traduziram em bem-sucedidas carreiras políticas; de modo análogo, isso acontecia na Zona Oeste e em outras áreas do estado.

Em termos simbólicos, o tráfico continua sendo o bode expiatório do crime no Rio de Janeiro, e o traficante o ator social mais estigmatizado, se comparado com o miliciano. Mais violência se reflete em mais demanda de segurança, ao passo que uma maior oferta de proteção informal precisa de uma menor (ou pior) oferta de proteção formal ou estatal, e esse tipo de relações de dependência operam como uma máquina político-econômica, que funciona tanto melhor quanto mais profunda for a ligação dos grupos criminosos com os poderes estatais.

Certamente, para boa parte da população, a indústria do medo estimula e incrementa soluções orientadas pela repressão estatal, pela demanda de “mão dura”, enxergando uma repressão sempre maior como única solução. Como já mencionamos, a violência no Brasil adquire um lugar privilegiado na linguagem e nas práticas sociais. Ela é uma gramática. Em termos ideológico-eleitorais, é comum tomar como solução para o problema da segurança pública mais violência, mais combate ao crime, mais repressão, mais morte, mais armas, mais oferta de proteção. Isso já é feito no Brasil há mais de um século e onde assistimos às mudanças?

Como a universidade, na sua opinião, pode contribuir para essa discussão e transformação desse cenário?

A universidade como espaço por excelência da produção de conhecimento tem como principal papel apontar e diagnosticar os problemas que são evidenciados pelas pesquisas empíricas e etnográficas. Todavia, tais diagnósticos não reverberam necessariamente em políticas públicas e também podem ser apropriados de forma absolutamente distinta da sua proposição inicial. O conhecimento da universidade é como o do dentista ou do médico que pode apontar para o paciente os caminhos a serem percorridos para prevenir uma doença ou coisa do gênero, mas o paciente pode em seguida desconsiderar tudo que lhe foi dito ao sair da consulta.

No InEAC e NUFEP, por exemplo, esses conhecimentos têm sidos transferidos à sociedade por meio de cursos de especialização ou de mestrado e doutorado em áreas que tangenciam a justiça e a segurança pública, bem como também a partir de prestação de consultorias e assessorias às agências governamentais (no âmbito Federal, Estadual e Municipal). Hoje temos, por iniciativa de pesquisadores vinculados a esses dois núcleos de pesquisa de excelência, o curso de Bacharelado em Segurança Pública, cuja inserção é equivalente a qualquer outro curso de graduação da universidade.

Encabeçada por um dos maiores estudiosos sobre o sistema de justiça criminal e segurança pública do país, o antropólogo Roberto Kant de Lima, o curso hoje possui professores e pesquisadores de alto gabarito e reconhecimento acadêmico nacional e internacional. No já consolidado Programa de Pós-Graduação em Antropologia, que completa 25 anos em 2019, há uma linha de pesquisa que abriga inúmeros antropólogos que se ocupam de tais questões, com publicações em revistas de impacto no Brasil e no mundo.

Mas, entre conhecermos os problemas e a solução dos mesmos há um enorme abismo. Talvez se o conhecimento produzido na universidade fosse mais valorizado e apropriado às políticas públicas, o Brasil estaria num rumo melhor.

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