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Pesquisadores da UFF discutem sexualidade sob a perspectiva do direito

Fundado no final de 2014 pelo professor Eder Fernandes, do Departamento de Direito Privado, o grupo de pesquisa “Sexualidade, Direito e Democracia” (SDD) desenvolve pesquisas jurídicas interdisciplinares por meio dos conceitos de sexualidade, governança e poder. Atualmente é composto por 23 pesquisadores, sendo 18 alunos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, cinco graduandos de iniciação científica e orientandos de trabalhos de conclusão de curso.

O grupo de pesquisa surgiu a partir das observações de Fernandes, coordenador geral, sobre questões pouco debatidas no Curso de Direito da UFF. Para ele, a graduação trata de personalidade, vida, autonomia do corpo, entretanto, quando o assunto é sexualidade, o debate é raso e tratado com recato, pois ainda é tabu. “Encontrei uma oportunidade de abordar afirmativamente. O objetivo era colocar o nome sexualidade como instrumento de afirmação, de um recorte analítico que praticamente não se fala e não se encontra na área jurídica. Nós tentamos pensar o direito a partir do conceito de sexualidade”, explica.

Estabelecer o conceito de sexualidade, promover ações de enfrentamento, empoderamento da mulher e discutir a violência são formas de enfrentar o tabu. O professor relata que o principal embate sofrido no início da disciplina não foi com o departamento ou com os professores. Alguns estudantes não aceitaram a proposta e começaram a se mobilizar pela internet, questionando a legitimidade da disciplina. “O questionamento veio de um grupo que a gente menos esperava, os alunos”, revela.

Fernandes pensou na ideia de criar o grupo de pesquisa sozinho. Primeiro, propôs oferecer uma disciplina optativa com o nome de “Direitos Sexuais Reprodutivos”, mas logo mudou para “Direito e Sexualidade”. Com o aumento da demanda de alunos interessados, surgiu o grupo “Sexualidade, Direito e Democracia”. “A primeira turma da disciplina tinha 60 vagas, com uma lista de espera de 120 pessoas. No primeiro semestre tive que oferecer duas optativas juntas, uma de manhã e outra à noite. Então eu vi que, realmente, a demanda existia. Foi a partir daí que criei o SDD”, declara.

Não é que estamos nos esquecendo dessa ideia da igualdade, mas pra chegar até isso eu preciso pensar a sociedade enquanto racista, enquanto heteronormativa e assim sucessivamente, afirma.”

Tanto a graduação quanto a pós-graduação participam ativamente das pesquisas, inclusive com disciplinas e atividades de extensão, que são oferecidas pelo professor e pelos alunos do mestrado e do doutorado como estágio em docência. Cada participante produz um trabalho específico e, a partir dele, é oferecido um determinado número de disciplinas a cada semestre para a graduação e pós. Neste segundo semestre de 2016, pelo menos 20 pesquisas estão em andamento. De acordo com Eder, o SDD desenvolve um estudo central, o “guarda-chuva”, que engloba os temas investigados pelos pesquisadores e estão relacionados entre si.

A optativa “Direito e Sexualidade” é fixa na grade do curso e, segundo Eder, é a guia mestra da equipe. Além dessa optativa regular, duas orientandas do mestrado estão desenvolvendo outras duas disciplinas, chamadas “Teoria Feminista do Direito” e outra sobre “Marcadores Sociais de Diferenças”. “Dependendo do estágio em que o aluno está, ou que tipo de pesquisa que está desenvolvendo no SDD, propomos uma disciplina para o semestre seguinte sobre este tema”, esclarece.

A ponte entre Direito e Sexualidade

O SDD não discute apenas questões sobre sexualidade. Debate, principalmente, a democratização da esfera privada. Por isso, a palavra “democracia” está no nome do grupo. A ponte entre direito e sexualidade é realizada a partir do questionamento sobre a sexualidade que implica em situações normativas e jurídicas. Envolve todos os marcadores quando se identifica a mulher enquanto mulher, a pessoa transexual enquanto transexual, existe a discussão de gênero e de sexualidade. “Faz-se uma afirmação pela diferença que surge pelo conceito de sexualidade. Há um marcador social dessa diferença, ou seja, é ler o direito a partir destas discussões”, analisa Eder.

Por exemplo, é possível ler o direito a partir de uma perspectiva feminista, perceber o quanto ele reproduz de estruturas masculinizadas, de uma determinada posição social do homem, que, muitas vezes, menospreza a mulher. É possível, também, fazer uma leitura por um viés heterossexual, como o direito privilegia determinadas orientações sexuais e assim por diante. É um vetor analítico, capaz de provocar determinadas questões sobre o direito, que tem ligação direta com a democracia.

Segundo Eder Fernandes, se observarmos a época moderna e sua relação com o direito, percebemos que nosso sistema jurídico é baseado numa ideia de liberdade universal, isto é, todos são iguais perante a lei. Atualmente, é possível notar que há um aprofundamento da diferenciação, pois quanto mais se diferencia, mais se percebe a singularidade para realmente produzir uma situação de liberdade e igualdade. Assim sendo, a ideia dos marcadores sociais de diferença provoca o sistema para que ele se sensibilize para essas particularidades e, havendo a sensibilização, o sistema encontrará formas mais satisfatórias de lidar com a desigualdade num sentido mais material. “Não é que estamos nos esquecendo dessa ideia da igualdade, mas pra chegar até isso eu preciso pensar a sociedade enquanto racista, enquanto heteronormativa e assim sucessivamente. São os novos direitos. Temos a ideia de direito universalizado e direitos particularizados, dentro de uma mesma proposta”, conclui.

Sexualidade, Governança e Poder

Para Eder, não é possível pensar a sexualidade sem pensar as dinâmicas de poder, pois senão o enfoque da discussão recai apenas sobre diferenças e identidades. “Essa é outra discussão, que tem mais a ver com a psicologia e outras áreas. A nossa maior preocupação é como essas dinâmicas acabam formatando sexualidades”, salienta. Segundo o professor, o grupo analisa a sociedade por dois vetores, o heterossexual e homossexual, e que dinâmicas de poder acabam formatando sexualidades “normais” e sexualidades “desviantes”.

Desta forma, toda essa dinâmica produz certa governabilidade sobre os corpos, como a de controle do corpo da mulher, ela tem a função reprodutiva e a obrigação de cuidar dos filhos. Isso contamina os sistemas de poder e eles reproduzem estas estruturas em legislação específica. “Depositar mais responsabilidade sobre a mulher do que sobre o homem, é um fator de poder que acaba governando os corpos, governando a subjetividade, por meio da sexualidade”, reitera.

O coordenador explica que se fala muito sobre sexualidade e se produz muito controle sobre ela. Uma das pesquisas realizadas coleta informações normativas que tocam a sexualidade, em que se percebe que da década de 80 até o tempo atual, existe uma inflação legislativa sobre essa questão. Fala-se demais sobre o tema e, quanto mais se fala, mais se produz dinâmicas de poder, e cada vez mais essas dinâmicas produzem normatividades sobre o corpo e a sexualidade. “Nós estamos tentando entender como o direito está falando sobre sexualidade, por que ele está falando, para quem ele está falando e qual a consequência da sua fala. São esses vetores analíticos que trabalhamos”, completa.

O projeto de extensão

O projeto de extensão “Corporalidades, Diálogo e Acolhimento: ações contra violências” desenvolve oficinas abertas ao público e conta, atualmente, com três atividades promovidas por quatro pesquisadores. São táticas de empoderamento feminino, mais voltado a práticas de luta física e de enfrentamento à violência. Um aluno da Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF é praticante de kung-fu e responsável em dar aulas de defesa corporal. Apesar das oficinas serem abertas ao público, elas são dedicadas às mulheres. “Outras incluem intervenções, determinadas ações artísticas, etc.”, acrescenta Eder.

O projeto nasceu da demanda de algumas alunas do direito, que, ao saírem da faculdade à noite, eram assediadas. Elas passaram a compartilhar informações nas redes sociais e se deram conta da fragilidade do corpo feminino. Com isso, questionaram se a forma como a mulher é criada socialmente não leva a uma situação de vulnerabilidade. O fato de discutir corporalidades, a forma como se porta o corpo da mulher na sociedade, já que não pode ser forte e ostensivo, são alguns dos motivos que levou o grupo a pensar uma ação de extensão voltada para essa realidade. As oficinas são realizadas na Faculdade de Direito.

Além de desenvolver práticas multicorporais, os pesquisadores também organizam ações de roda de conversa com mulheres no sistema prisional e com aquelas que foram vítimas de violência. Isso faz parte da pesquisa sobre violência de gênero e também do aspecto mais profundo da extensão, que é levar outra dinâmica para a sociedade, a partir de demandas existentes. Uma atividade que já foi promovida em duas edições anuais foi um desfile no Colégio Estadual Conselheiro Macedo Soares, no Barreto, em Niterói, sobre empoderamento da mulher negra e como produzir sua estética. A ação foi organizada por um aluno do mestrado, que é professor de artes do ensino fundamental, junto com outros pesquisadores.

Eder Fernandes lembra que o SDD é o primeiro grupo de pesquisa no direito que debate sexualidade no Brasil e oferece uma disciplina fixa todo semestre. “É o nome da UFF que a gente leva para outros lugares. Estamos em vários eventos, seminários e grupos de trabalho. Além disso, temos provocado uma importante mudança no corpo discente, pois, só neste segundo semestre de 2016, foram orientados dez trabalhos de conclusão de curso. O nome da universidade vira referência”, enfatiza.

O livro

O primeiro livro do grupo “Qual o futuro da sexualidade no direito?”, fruto de uma pesquisa de dois anos, terá seu pré-lançamento no dia 14 de dezembro, na Universidade do Porto, em Portugal, e, no Brasil, será lançado, em fevereiro de 2017. A publicação trata de vários temas de uma mesma pesquisa, como aborto, transexualidade, mercado de trabalho, homossexualidade e outros assuntos que tocam a sexualidade e voltados para o direito. A publicação reúne 14 trabalhos sobre política sexual no direito, sendo três em coautoria, escritos por 17 pesquisadores.

Para saber mais sobre as pesquisas do grupo “Sexualidade, Direito e Democracia” e como participar das atividades de extensão, acesse http://www.sdd.uff.br/.

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