Pessoas indígenas utilizando a internet. Foto: Politize!
Segundo dados do Censo de 2010, atualmente o Brasil abriga cerca de 274 línguas indígenas, apenas 20% das estimadas 1.175 línguas que o território possuía em 1500, no entanto, o país não reconhece oficialmente nenhuma dessas linguagens em âmbito nacional. Por conta de fatores como desmatamento, êxodo rural, atividades de garimpo, extração de madeira ilegal, assassinatos de líderes e outros problemas, a maioria das línguas indígenas do Brasil passam por um processo acelerado de desaparecimento que coloca em risco de extinção longas linhagens de famílias linguísticas, como a Tupi-Guarani, por exemplo, que contém em seu tronco linguístico a tupi-mondé.
Para ajudar na aprendizagem e na preservação de línguas e dialetos indígenas, a doutora em Ciências, Tecnologias e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Laboratório de Design Thinking, Gestão e Engenharia Industrial da UFF (LabDGE/UFF), Ilma Rodrigues de Souza Fausto, desenvolveu o aplicativo “Comunica Tupi-tradutor” capaz de traduzir conteúdos em língua portuguesa para o tupi mondé e promover a compreensão entre as comunidades indígena e não indígena no estado de Rondônia. “Vamos contextualizar nossas atividades para que o indígena se sinta acolhido, sem interferir na cultura deles”, afirma a doutora. Atualmente, o projeto trabalha com 52 etnias no estado.
O Comunica-Tupi Tradutor surgiu a partir da dificuldade de inscrição e ambientação dos indígenas no curso “Robótica educacional para indígenas”. No início, pela falta de letramento digital e dificuldades com a língua, as inscrições eram feitas manualmente, o que motivou a pesquisadora, junto à orientadora e professora de Engenharia Mecânica da UFF, Fabiana Rodrigues Leta, e com a coorientadora e doutora em Ciências e Biotecnologia pela UFF, Ruth Maria Mariani, a criar um aplicativo que realizasse a tradução simultânea do tupi mondé para o português a partir de um glossário digital, no qual os indígenas podem inserir termos relacionados à computação no ambiente virtual. Por meio da tradução simultânea, o projeto une linguística e tecnologias modernas, capazes de auxiliar estudantes e pessoas interessadas em aprender e difundir idiomas originários.
“No início, pensei, vamos tentar trabalhar a questão da robótica com os indígenas, porque a computação é letramento digital. A ideia era apresentar a tecnologia para que eles aplicassem nas aldeias. Cada aldeia possui uma escola, então fizemos esse tradutor que trabalha como extensão dentro do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Por exemplo, se eles tinham dificuldade com a palavra robótica, iam ao tradutor e colocavam, se a palavra não existia, eles incluíam a tradução. Então, os indígenas começaram a povoar o nosso ambiente”, explica a pesquisadora.
Um dos objetivos do aplicativo é realizar uma aprendizagem inclusiva, que contempla, além da tradução, a contextualização das palavras e o estímulo ao pensamento crítico, para demonstrar a importância do assunto ensinado no cotidiano e na realidade dos alunos.
Técnica de aprendizagem da máquina
Focado em reverter o quadro de baixas inscrições de indígenas, o Comunica Tupi começou a funcionar de maneira ampliada, para traduzir os textos completos dos editais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO). As responsáveis pelo aplicativo perceberam que era necessária a inserção de uma inteligência artificial que possibilitasse a aprendizagem automática do aplicativo, chamada Machine Learning. Essa técnica funciona através da criação de uma biblioteca, que será povoada com os termos, depois, o sistema passa a aprender sozinho.
“A gente está com quase 13 mil termos dentro da biblioteca. O sistema assimila os áudios gravados em um home studio para que o aplicativo comece a pesquisar sobre os dialetos, aprendendo o que precisa. Atualmente, tratamos os erros, então o sistema mostra o que está errado e corrigimos. O objetivo é que até novembro, o aplicativo aprenda igual a uma criança, na faixa entre 5/7 anos. Em dois anos, esperamos que o Comunica Tupi passe pelo processo de aprendizagem igual ao de um adolescente”, afirma Fausto.
A doutora explica que a Microsoft do Canadá usou uma técnica parecida para a criação do tradutor “No Canadá, a Microsoft do país utilizou uma técnica semelhante, em que os indígenas canadenses criaram um tradutor. No Brasil, esse trabalho foi feito pela Google, que pegou algumas palavras no Museu Nacional dos Povos Indígenas e colocou dentro do seu sistema para fazer a tradução. Porém, essa tradução não abrangia o tronco linguístico das diferentes regiões”, destaca a professora.
No momento, além de traduzir, o aplicativo interpreta frases. No inglês, por exemplo, a tradução não deve levar em conta o significado literal das palavras, mas sim, todo o contexto da frase. A pesquisadora Ilma afirma que, na fase atual do projeto, o aplicativo trabalha para funcionar como uma extensão do Google, capaz de traduzir do português para o tupi em poucos cliques. A expectativa é que até o início do próximo ano essa etapa esteja funcionando corretamente.
Contextualização da realidade indígena com tecnologia
Durante as aulas e trabalhos com os indígenas, diversas atividades com recursos tecnológicos foram realizadas para familiarizá-los com diferentes tecnologias e contextualizar a realidade. A pesquisadora afirma que mesmo com as tecnologias utilizadas os indígenas sentem falta da presença de aldeias “Utilizamos o meta quest, óculos de realidade virtual, para colocar os indígenas no espaço sideral e, ao contrário de outros professores que ficaram admirados, eles me perguntaram se naquele ambiente não tinha aldeia”.
Fausto exemplificou a técnica utilizada em ambiente virtual para familiarizar os indígenas com tecnologias a partir da realidade que vivem “Ainda no meta quest, pegamos fotos das aldeias, trabalhamos em Unity e criamos as aldeias dentro desse ambiente, colocando os indígenas dentro desses locais. Eles falaram que o desmatamento era muito grande por diversos motivos e que as árvores, quando cortadas, sobem como se fossem almas. Então, quando eles mandaram fotos de uma floresta que estava quase derrubada, colocamos no meta quest essa floresta em pé, e quando ela cai, as árvores sobem. Nós ficamos muito tocados e eles se emocionaram, porque a gente estava contextualizando a realidade deles através da informática”, explica Fausto.
Produção de livro sobre educação indígena
Como resultado da pesquisa, está em produção, através da Editora da UFF (EdUFF), o livro “Trilhando caminhos tecnológicos na educação indígena: desafios e inovações da etnoinformática para uma aprendizagem significativa”, que aborda como os aspectos deste ramo da informática podem ajudar para o letramento digital, a integração da computação e o ensino do pensamento computacional para população indígena.
Fausto explica que o livro será produzido em versões impressas e digitais para a distribuição nas aldeias “É um livro para mostrar a todo mundo que é possível criar uma etnoweb, aplicando a etnoinformática e receber uma resposta positiva do público indígena. Mandamos o livro para a EdUFF, que avaliou o material em dois meses e agora está produzindo para a publicação. O livro será publicado em breve na versão impressa e em e-book. Essa demanda impressa foi observada pela necessidade de distribuir o material nas aldeias”, conclui.
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Ilma Rodrigues de Souza Fausto é professora de informática em regime de dedicação exclusiva do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO). Possui graduação em sistemas de informação pelo Centro Universitário Luterano de Ji-Paraná (CEULJI). Mestre em educação escolar (PPGEEPROF/UNIR) e Pós-Graduada em metodologia do ensino superior, psicopedagogia clínica, supervisão, orientação e gestão escolar; gestão e segurança; Pedagogia Empresarial.
Fabiana Rodrigues Leta é professora titular do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal Fluminense (TEM/UFF). Possui graduação em Engenharia Mecânica pela UFF, mestrado em Engenharia Mecânica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutorado em Engenharia Mecânica pela PUC-Rio. É criadora e coordenadora do Laboratório de Metrologia Dimensional e Computacional da UFF (LMDC/UFF).
Ruth Maria Mariani Braz é professora do curso de mestrado profissional em Diversidade e Inclusão da Universidade Federal Fluminense. Possui pós-doutorado no programa de pós- graduação em Ciências, Tecnologia e Inclusão (PGCTIn/UFF) e doutorado em Ciências e Biotecnologia da UFF.