As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte no mundo, e, à medida que novos fatores de risco emergem, cientistas se esforçam para entender as influências mais sutis por trás desses problemas. Nos últimos anos, estudos científicos alertam para os impactos do bisfenol A (BPA), uma substância presente em plásticos e resinas, no sistema endócrino humano. Com as regulamentações cada vez mais rígidas sobre o uso do BPA, a indústria química introduziu o bisfenol S (BPS) como principal alternativa. No entanto, uma pesquisa pioneira desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisa em Morfologia e Metabolismo e pelo Laboratório de Ciências do Exercício da Universidade Federal Fluminense (UFF) indica que o BPS pode ser tão prejudicial quanto o seu antecessor, especialmente para o coração.
Em sua tese “Efeitos da exposição ao bisfenol S e dieta hiperlipídica no remodelamento cardíaco”, a biomédica e doutora em Ciências Biomédicas pela UFF, Beatriz Alexandre-Santos, investigou os efeitos da exposição ao BPS no coração. A pesquisa revelou que o BPS pode causar remodelamento cardíaco, processo ligado a diversas doenças cardiovasculares, como hipertrofia cardíaca, fibrose e inflamação. Além disso, o estudo aponta que o BPS, quando combinado com uma dieta rica em gorduras, intensifica esses danos e agrava os fatores de risco associados à obesidade.
Substituto perigoso
O BPA é amplamente conhecido pelos seus impactos negativos ao meio ambiente e à saúde. A exposição à substância pode provocar distúrbios hormonais, complicações reprodutivas, câncer, doenças cardíacas e diabetes. Em decorrência disso, uma série de regulamentações e restrições foram estabelecidas a respeito do uso em produtos plásticos, como embalagens alimentícias e mamadeiras. Contudo, a indústria passou a utilizar o BPS como principal substituto, sem a mesma regulamentação rigorosa. “Embora o BPS tenha sido introduzido como uma alternativa segura ao BPA, nossos estudos mostram que ele pode ser igualmente prejudicial, especialmente no que diz respeito à saúde do coração”, alerta Alexandre-Santos.
O BPA e o BPS compartilham estruturas químicas muito semelhantes, tendo ambos os compostos fenólicos ligados por um grupo central. A principal diferença estrutural entre eles está no grupamento sulfonil encontrado no BPS, enquanto o BPA não tem essa característica. Embora essa mudança tenha sido introduzida para criar uma alternativa ao BPA, permitindo que os produtos fossem rotulados como “BPA Free”, os efeitos do BPS levantam novas preocupações.
Motivada pela crescente preocupação com as doenças cardiovasculares, que, segundo o Ministério da Saúde, são responsáveis por 30% dos óbitos no Brasil, a pesquisa, realizada com camundongos, mostrou que a exposição ao BPS, quando associada a uma dieta hiperlipídica, típica de sociedades que consomem alimentos ultraprocessados e ricos em gordura, potencializa os danos cardíacos. “Nós observamos que a combinação da obesidade com a exposição ao BPS intensifica a hipertrofia e a fibrose cardíaca, condições que podem evoluir para doenças cardiovasculares graves, como insuficiência cardíaca”, pontua a biomédica.
O projeto conta com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e foi orientado pela professora do Departamento de Morfologia, Eliete Dalla Corte Frantz; pelo professor de Histologia e Embriologia do Instituto Biomédico, D’Angelo Carlo Magliano; e pelo professor do Departamento de Fisiologia e reitor da UFF, .Antonio Claudio Lucas da Nóbrega.
Composto ainda não possui regulamentação
Um dos pontos de maior preocupação apontados pela pesquisa é o fato de o BPS estar presente em produtos usados no dia a dia, como embalagens de alimentos, garrafas plásticas e papéis térmicos, sem qualquer regulamentação específica.
“Diferente do BPA, que tem um limite seguro de exposição estabelecido e legalmente existem agências regulamentadoras que controlam a utilização desse composto, o BPS não é regulamentado. Nossa descoberta aponta que até pequenas doses dessa substância podem ser prejudiciais, especialmente a longo prazo. Por isso, um dos objetivos da pesquisa é construir um corpo de evidências que possa ser útil para futuras regulamentações”, explica a pesquisadora.
De acordo com Alexandre-Santos, estudos epidemiológicos anteriores indicam que mais de 80% da população mundial tem traços detectáveis de BPS na urina. “A exposição ao BPS é onipresente, presente em embalagens de alimentos e bebidas, e mesmo em itens de cuidados pessoais. Isso significa que as pessoas estão correndo riscos diários de desenvolver problemas graves de saúde”.
Os principais desafios para a regulamentação do BPS, em contraste com o BPA, giram em torno da necessidade de um corpo de evidências científicas robusto. Além disso, há desafios significativos, como o engajamento de agentes públicos e da sociedade em geral para que o tema entre na agenda da saúde pública e da preservação do meio ambiente. Outro obstáculo é a questão da exposição ambiental: independentemente de ações individuais para minimizar o uso de plásticos, a população está amplamente exposta ao BPS devido à sua presença disseminada no ambiente. Portanto, a regulamentação eficaz precisa considerar tanto os impactos diretos na saúde quanto os desafios mais amplos de poluição ambiental.
Possíveis soluções
A eliminação completa do uso de plásticos no cotidiano pode ser impraticável, mas há medidas simples e eficazes que diminuem os riscos à saúde. “A gente primeiro precisa ter clareza de que os plásticos não são vilões. Toda vez que apresentamos os nossos dados e conversamos um pouco sobre o nosso estudo, as pessoas ficam assustadas e querem banir completamente o uso de plástico na vida delas, mas isso não é possível em termos práticos, além de não ser o propósito da pesquisa. Não queremos gerar terrorismo sobre o uso de plástico, mas conscientização”, explica a pesquisadora.
Uma das recomendações mais importantes é evitar o aquecimento de alimentos em recipientes plásticos, seja no micro-ondas ou no forno, já que essas ações reduzem a exposição ao BPS, tendo em vista que os recipientes plásticos, quando esquentam, liberam mais bisfenol e outros compostos.
“Um ótimo exemplo é: no caso de recipientes que são levados ao micro-ondas, é preferível usar os de vidro, não de plástico. O mesmo vale para garrafas de água e o uso de copos. A pretensão não é sobre banir completamente o uso de plástico, mas, sem dúvidas, minimizar o seu uso”, sugere Frantz, orientadora da pesquisa.
Recepção e próximos passos
Os dados revelados pela pesquisa foram recebidos com grande interesse pela comunidade científica. “Fomos convidadas a apresentar nossos resultados em conferências e publicamos em uma revista de alto impacto, o que gerou visibilidade para o estudo, convites para palestras e artigos de revisão sobre o tema”, revela a pesquisadora. O artigo, que resultou da tese de doutorado, foi publicado na revista Environmental Research, que possui fator de impacto 7,7 (revistas com fator de impacto acima de 5 são consideradas excelentes).
Com o avanço dos estudos, Alexandre-Santos destaca que pretende expandir a análise dos efeitos do BPS para outros órgãos. “Além do coração, vamos investigar o impacto do composto no tecido adiposo, pâncreas e fígado, essenciais para o metabolismo e frequentemente afetados pela obesidade. Nossa colaboração com o professor D’Angelo Magliano vai nos permitir aprofundar o entendimento dos efeitos do BPS nesses diferentes órgãos”.
O plástico é um problema que afeta o meio ambiente há séculos. Variantes e subprodutos surgem com novos nomes e diferentes características, mas continuam sendo um problema tanto ambiental quanto de saúde pública. O alerta das pesquisadoras diante das evidências que conectam o BPS a problemas cardíacos reforça a importância da necessidade de um debate amplo sobre a exposição a compostos químicos e seus efeitos a longo prazo, além de pavimentar o caminho para novas pesquisas e discussões sobre a segurança de produtos utilizados diariamente.
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Beatriz Alexandre-Santos é Biomédica habilitada em Pesquisa Científica (2016) e em Análises Clínicas (2017) pela UFF. Técnica em Biotecnologia (2011) pelo IFRJ, Mestre (2019) em Ciências Cardiovasculares pela UFF e Doutora (2023) em Ciências Biomédicas pela UFF. Faz Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Biomédicas (Fisiologia e Farmacologia) da UFF. É docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Cardiovasculares da UFF. Tem experiência em docência nas disciplinas de embriologia básica e histologia. Atua na área de Morfologia e Biologia Molecular, com ênfase em modelos experimentais relacionados aos seguintes temas: obesidade, remodelamento cardíaco, cardiometabolismo, sistema renina-angiotensina e bisfenois.
Eliete Dalla Corte Frantz é Professora Adjunta do Departamento de Morfologia da UFF. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Cardiovasculares e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biomédicas da UFF. Possui graduação em Farmácia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ – 2002). Mestre (2011) e Doutora (2014) em Ciências – Biologia Humana e Experimental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Concluiu o pós-doutorado (2019) no Laboratório de Ciências do Exercício (LACE) da UFF. Tem experiência em Farmacologia, Controle de Qualidade e Farmácia Comercial. Atua na área de Anatomia Humana e Morfologia, com ênfase em estereologia e biologia molecular direcionada aos seguintes temas: farmacologia, síndrome metabólica, sistema renina-angiotensina, nutrição experimental, exercício, resistência à insulina e doença hepática gordurosa não alcoólica.
D’Angelo Carlo Magliano é Biomédico pela UFF (2010) com habilitação em Patologia Clínica e Docência e Pesquisa em Patologia e Histologia Humana. É licenciado em Ciências Biológicas (UCAM-2012), mestre (2012) e doutor (2015) em Ciências – Biologia Humana e Experimental (UERJ), tendo realizado período sanduíche em 2014 na Universitat de Barcelona pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (CAPES). Atualmente faz pós-doutorado no Laboratório de Endocrinologia Experimental (UFRJ) onde também é Orientador do Programa de Pós-Graduação em Endocrinologia da Faculdade de Medicina. Na UFF, é Professor Adjunto II de Histologia e Embriologia do Instituto Biomédico, Orientador do Programa de Pós-Graduação em Patologia da Faculdade de Medicina, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Morfologia e Metabolismo (NUPEMM). Tem experiência na área de Morfologia e Metabolismo atuando com modelos experimentais nos seguintes temas: obesidade, desreguladores endócrinos e eixo fígado/órgão adiposo/intestino.
Antonio Claudio da Nóbrega possui graduação em Medicina pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Ciências Biológicas (Biofísica) e doutorado em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com estágio Sanduíche/Research Fellowship na University of Texas Southwestern Medical Center at Dallas, Texas, EUA sob a supervisão do Dr. Jere H. Mitchell. Possui Aperfeiçoamento em Cineantropometria pela Burnaby University, Canadá e títulos de especialista em Medicina do Exercício e do Esporte e em Cardiologia, tendo participado nas equipes médicas de diversas competições nacionais e internacionais como Jogos Pan-Americanos e Jogos Olímpicos. Atuou como coordenador do projeto de implantação da Unidade de Pesquisa Clínica do Hospital Universitário Antonio Pedro (HUAP/UFF), como coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Cardiovasculares, como Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, depois como Vice-Reitor e hoje Reitor da UFF.