O recente desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, na região central da cidade de São Paulo, trouxe à tona o debate sobre os movimentos organizados de ocupação de locais abandonados, que há alguns anos tem crescido e se fortalecido, especialmente nas grandes cidades do Brasil. Na região metropolitana do estado do Rio não é diferente e, com olhos para essa realidade social, a UFF conta com o Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu), um grupo de pesquisa que há 35 anos mantém um trabalho de extensão que assessora tecnicamente famílias da região Leste Fluminense em questões habitacionais.
O núcleo conta com a participação de docentes e estudantes de mestrado e doutorado dos cursos Arquitetura, Serviço Social, Direito, Engenharia Civil e Comunicação Social, além de 12 bolsistas de graduação. O grupo não só oferece assessoramento técnico, como desenvolve pesquisas nas áreas de urbanismo e habitação e organiza eventos como reuniões e seminários populares. Desde sua fundação, o Nephu esteve envolvido em mais de 100 projetos.
Segundo o professor do Departamento de Direito e atual coordenador do Nephu, Enzo Bello, os membros da equipe oriundos dos cursos de Arquitetura e Engenharia Civil atuam sobretudo no planejamento e reparos das construções. Os estudantes do Serviço Social trabalham com a conscientização e organização das comunidades; e os de Comunicação Social transformam o linguajar técnico em conhecimento de fácil absorção para a população. Já os alunos de Direito atuam não só na análise jurídica de políticas públicas e das ações acadêmicas realizadas pelo núcleo na sua relação com a sociedade civil, como também elaboram cursos de extensão para conscientização da população sobre direitos humanos e o papel do Estado na questão da moradia.
Criado em 1983, o Nephu surgiu a partir da demanda social dos moradores da Favela do Gato em São Gonçalo. Eles se viram ameaçados de remoção devido às obras de construção da rodovia BR-101 e buscaram auxílio na luta pela permanência junto aos alunos da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, que na época faziam trabalhos de campo na comunidade. A professora da pós-graduação e fundadora do núcleo, Regina Bienestein, explica que desde então, em geral, quando as comunidades nessa situação entendem que têm o direito de continuar no local, procuram o Nephu para atestar tecnicamente que há essa possibilidade. Além disso, existem aqueles que primeiramente se dirigiram ao poder público e ao não terem sua situação resolvida, também procuram o núcleo em busca da realização de projetos que possam comprovar seu direito de permanecer.
Abaixo, a arquiteta explica um pouco mais sobre a relevância social das atividades desenvolvidas no Nephu.
O Nephu iniciou suas atividades em 1983 com o caso da Favela do Gato. Gostaríamos que contasse um pouco mais sobre esse processo.
Desde sua criação, em 1971, o curso de Arquitetura e Urbanismo da UFF tem um foco social que se consolida, por exemplo, através de duas disciplinas obrigatórias que tratam da questão da habitação: “Projeto de Habitação Popular” e “Teoria da Habitação”. Naquela época, os alunos podiam entrar nas comunidades, pois não havia os problemas de violência que existem hoje, e tinham contato direto com os moradores. Então, quando a Favela do Gato foi ameaçada de remoção, as famílias procuraram auxílio com nossos estudantes, que nos encaminharam as demandas. O trabalho durou até 1991, quando receberam a titulação oficial dos lotes e conseguiram evitar a remoção total. Só foram retiradas aquelas pessoas que realmente estavam na faixa da estrada. Mesmo assim, puderam optar por sair ou ficar no assentamento que foi instalado ao lado. Também haviam aqueles que não precisavam, mas optaram por sair, e aqueles que precisavam sair e não queriam, então permutaram. O núcleo fez todo o arranjo técnico para viabilizar o projeto. Não foi apenas uma vitória da universidade, pois a mobilização dos moradores foi fundamental. Nós disponibilizamos o suporte técnico, mas foram eles que fizeram grandes manifestações durante a construção da estrada.
Além do caso da Favela do Gato, poderia exemplificar outros projetos desenvolvidos no núcleo?
Enquanto trabalhava na Favela do Gato, o Nephu passou a receber outros pedidos, foi a partir desse projeto que outras comunidades começaram a saber que a UFF tinha esse trabalho. Ainda em 1986 nós começamos um outro projeto que envolvia 12 glebas em Niterói, com 5.000 famílias. Também fomos por muitos anos assessoria técnica da Federação das Associações de Moradores de Niterói (Famnit), depois começaram a chegar pedidos do Rio de Janeiro. Foi quando nós em parceria com o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern-UFRJ) e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippur/UFRJ) demos apoio à Vila Autódromo, localizada na Barra da Tijuca, na luta contra a remoção para a construção do parque que sediaria os Jogos Olímpicos 2016. Atualmente estamos montando um curso de extensão popular em parceria com algumas associações de moradores de Niterói onde iremos trabalhar temas ligados a habitação como o estatuto da cidade, as questões ligadas ao risco e, no final, vamos fazer um plano popular numa das áreas que tiver trabalhando com a gente.
Como ocorrem essas ocupações?
As pessoas precisam morar. As favelas foram criadas pois nem o poder público, nem o mercado deram solução para habitação da parcela mais pobre da sociedade. Enquanto existiam terras vazias eles foram ocupando aos poucos, eram terras que não eram valorizadas pelo capital imobiliário. Vila Autódromo chegou quando a elite nem pensava em morar lá. Quando essa terra começa a ser atraente para o capital imobiliário, começam os processos de remoção. Então ocupa-se. A comunidade Mama África, tem mais de 20 anos. Lá tinham dois casarões desocupados, uma pessoa tomava conta e deixou uma primeira família entrar pagando um aluguel, depois de um tempo entrou uma segunda, e foi crescendo. Hoje são 26 famílias que moram no espaço de dois casarões. Também, já faz algum tempo, existem ocupações organizadas onde um grupo de famílias decidem ocupar uma área que eles sabem que está ociosa há muito tempo, nesse caso o objetivo é mostrar que existem famílias sem casa, e casas sem família. Durante a semana de calouros nós fizemos um evento de recuperação de fachada na comunidade, na Rua Passos da Pátria. O objetivo era chamar atenção do poder público para questão da moradia.Temos um projeto pronto para a Mama África, só falta os órgãos responsáveis implementarem.
O que a lei fala sobre essas ocupações?
A Constituição Federal de 1988 aborda um tema especialmente relevante para a questão da moradia, A Função Social da Propriedade, que além de estar presente na Constituição de 1988, foi reforçada no Estatuto da Cidade. Ela diz que uma propriedade não pode ficar sem uso durante décadas numa área que tem infraestrutura, pois infraestrutura gera gasto público. Quando alguém deixa uma área vazia por muito tempo temos um indicador de que o terreno está reservado, esperando um possível crescimento do mercado imobiliário, além de demonstrar que não precisa da área. E isso não é cassar o direito do proprietário. Existe o Plano Diretor, existe a Lei de Uso e Ocupação do Solo e antes de construir em qualquer ponto da cidade o proprietário tem que procurar saber o que se pode construir e se adequar ao que é pedido. O município pode, por exemplo, definir que uma determinada região é uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), e que portanto, naquela região, devem ser construídas moradias populares.
O que é o processo de gentrificação e como ele afeta essa questão?
Gentrificação é um processo de transformação de centros urbanos através da mudança dos grupos sociais ali existentes, onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas. É um termo recente para um problema antigo. Ele ocorre por conta da valorização fundiária, e do aumento de valor do custo de vida em determinada região. Quando, por exemplo, começam a construir prédios com um outro patamar social e econômico, os serviços vão começar a se voltar pra essa nova classe, vão se sofisticar e ficar mais caros, os aluguéis vão se elevar. Com isto quem é de baixa renda, quem tá no comércio popular, no prédio de apartamentos antigo de quatro pisos, etc não vai conseguir se manter. Quando muda a classe social da região e tudo começa a girar em torno dela, as pessoas de menor renda naturalmente vão ser expulsas e vão procurar habitação na periferia. Mas a periferia já está toda povoada. Então essa pessoas vão ocupar algum outro lugar, é lógico. Quando você passa pela calçada da defensoria pública no Rio de Janeiro de noite, você vê várias pessoas dormindo no chão. Todos eles são trabalhadores que ou não tem dinheiro pra voltar pra casa, ou moram muito longe para ir e voltar todos os dias, então durante a semana eles dormem na calçada da defensoria porque sabem que ali é um lugar menos perigoso para eles.
Em seu modo de ver, isso está diretamente ligado ao Direito à Cidade?
Na verdade, o direito à cidade, definido no Brasil pela Constituição Federal de 1988, regulamentado por lei posterior denominada “Estatuto da Cidade”, é uma garantia de que todo brasileiro tem de usufruir da estrutura e dos espaços públicos de sua cidade, com igualdade de utilização. E isso não significa só ter acesso aos serviços oferecidos na cidade. Também é ter direito de voz nas decisões sobre a cidade, porque se você tem uma verdadeira participação no processo decisório, a cidade pode seguir caminhos mais democráticos. O verdadeiro direito à cidade é poder tomar nas mãos os destinos da cidade.
Existem movimentos que organizam ocupações. No caso do edifício em São Paulo, houve acusações de extorsão por parte desses movimentos. Como eles funcionam e o que seria essa questão da extorsão?
Esses movimentos identificam áreas que estão vazias e organizam famílias para ocupar os terrenos. Ocupam como uma forma de chamar atenção para a questão da habitação. A ocupação do edifício na região central de São Paulo era feita por um desses movimentos e o que a gente viu na imprensa foi a criminalização da luta, acusações sobre cobranças de taxas e extorsão. Quando se entra num prédio você precisa administrar, os movimentos não cobram pela administração, mas têm que comprar material de limpeza, às vezes é necessário realizar consertos. A taxa que é recolhida serve para aplicar dentro da ocupação, é preciso criar condições adequadas de habitação. Quando as pessoas se organizam numa ocupação, elas têm consciência de que precisam dar conta daquele espaço.
Existem ocupações desse tipo que tiveram êxito em suas demandas?
A Ocupação Manoel Congo no Centro do Rio é um exemplo, eles terminaram recentemente de recuperar o prédio. A posse é coletiva, antes de entrar você sabe que não pode vender o seu espaço sem antes passar pelo coletivo, porque quem entrar tem que concordar com as regras pré-estabelecidas. O proprietário não pode alugar, pois é um local de moradia, não um local de geração de renda. Essas são as regras básicas. Depois eles dividem todas as tarefas coletivas, desde manter o prédio limpo, realizar pequenos consertos, pintar, arrumar. Para isso eles têm um nível de organização e senso de direito à moradia fantástico. Eles fizeram uma outra experiência, e conseguiram o direito à moradia sem entrar no circuito financeiro da mercadoria moradia.
E qual a relevância dessa experiência prática para a formação profissional dos alunos que integram o Nephu?
Quando o poder público lança programas como o Favela Bairro, ou o Morar Carioca, eles vêm buscar os nossos estudantes, porque eles têm o conhecimento não só teórico, como prático, de como entrar numa área, fazer um levantamento. É um saber bem específico. As universidades, no geral, não estão focadas em formar profissionais capacitados para trabalhar com a questão da moradia e dos territórios informais. No Nephu, os alunos devem desenvolver tarefas vinculadas ao projeto, participar de reuniões, cursos, além de desenvolver uma sistemática de leitura de textos que deem embasamento teórico ao trabalho.