“O racismo tem forte presença tanto na violência do Rio de Janeiro quanto nas formas como o Estado a enfrenta”. Assim o cientista político Jorge da Silva sintetiza a relação entre os dois pontos principais do seu livro “Violência e Racismo”. A Editora da UFF (Eduff) acaba de lançar a terceira edição da obra, originalmente publicada em 1998 e que recebeu uma segunda edição em 2008. Referência nos estudos sobre segurança pública, o trabalho é fruto da dissertação de mestrado defendida por Jorge da Silva no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFF, sob a orientação do professor Roberto Kant de Lima.
A experiência pessoal do autor, criado no hoje chamado Complexo do Alemão, serviu de referência para incorporar, de forma inovadora, a temática da discriminação racial ao estudo da violência. Afinal, o autor se debruçou sobre essa relação no momento em que diversos pesquisadores ignoravam a conexão entre os dois temas. Como capitão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, realizou um curso nos Estados Unidos que o aproximou dos estudos sobre ação afirmativa e lhe permitiu uma comparação entre Brasil e EUA: “percebi que não havia muita diferença entre os lugares reservados aos negros, lá e aqui”, afirma. A incursão nas políticas afirmativas daquele país resultou numa monografia apresentada em 1988, ano do centenário da abolição da escravatura, que foi vencedora do concurso promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ) no mesmo ano. Dez anos mais tarde, o trabalho foi publicado com o título “20 anos de Abolição: 1988-2008”. O cientista político também lançou os livros “Guia de luta contra a intolerância religiosa e o racismo”, “Criminologia crítica: segurança e polícia”, “Direitos civis e relações raciais no Brasil” e “Controle da criminalidade e segurança pública”.
Doutor em Ciências Sociais pela Uerj e também mestre em Letras pela UFF, Silva é professor convidado e conteudista do curso de Tecnólogo em Segurança Pública da UFF, além de professor adjunto da Uerj. É ex-secretário de Estado de Direitos Humanos do Rio de Janeiro e na Polícia Militar, dentre outras funções, foi chefe do Estado-Maior Geral. Bastante atual até hoje, o livro “Violência e Racismo” inspira a produção de diversos trabalhos, discussões e reflexões, como a entrevista com Jorge da Silva, a seguir.
O que o motivou a escrever a primeira edição de “Violência e Racismo”, em 1998?
A abordagem que cruza violência com racismo me apareceu quando comecei a fazer o mestrado, há 20 anos. E por minha identidade social, eu era morador do Complexo do Alemão, achava que essa relação tinha a ver. Nos estudos que fiz para a dissertação, concluí que os dois fatores conversavam entre si de forma muito importante. A pesquisa me mostrou que o racismo tem forte presença não só na prática da violência no Rio de Janeiro, mas também nas formas como o poder público resolve enfrentá-la, pois, na aplicação de políticas contra a violência criminal o próprio Estado tem um viés fortemente racista, o que é facilmente observável. Quando escrevi o livro, em virtude da minha experiência como policial, achava extremamente complicado haver grandes estudos sobre a violência no Brasil e no Rio de Janeiro, muitos teóricos explicando a criminalidade, mas era como se, para esses estudiosos, não houvesse uma questão racial no país, porque sequer tocavam no assunto. Isso me incomodava. Procurei algum estudo anterior nesse sentido, mas não encontrei. Pelo que eu me lembro, foi a primeira vez que alguém fez esse cruzamento.
E essa relação permanece até hoje, pelo que o senhor percebe? De 18 anos para cá, o que mudou?
Um detalhe importante nisso tudo é que, no Brasil, as elites intelectuais brasileiras do final do século XIX e início do século XX produziram uma explicação que deixava de fora a questão racial. O país, segundo essa crença, tinha conseguido construir uma sociedade racialmente democrática. O mito da nossa democracia racial estimulou a Unesco a patrocinar pesquisas nesse sentido, porque ela queria demonstrar para o mundo que era possível haver uma convivência racial, dando o Brasil como exemplo. Mas aí fizeram a pesquisa e concluíram exatamente o contrário: que o Brasil talvez tivesse problemas até mais graves do que os de outras sociedades nas quais se reconhecia o racismo. Hoje esse mito se perdeu, foi derrubado, mas retomar o assunto, quase 20 anos atrás, ainda era uma contradição, era como pecar contra a castidade.
O grande historiador Joel Rufino dos Santos (1941-2015) falava sobre isso no livro com o seguinte título, “O que podem os intelectuais fazer pelos pobres?”. Ele dizia que os intelectuais tinham pena de pobre. Quando começam a ocorrer as políticas de ação afirmativa, muitos intelectuais passam a ter raiva de pobre. Passa-se da pena à raiva. É a grande diferença de lá pra cá.
Dentre os fatos históricos que o senhor aponta no seu livro, como atualização do debate sobre as questões raciais, estão as várias leis visando à implementação de cotas raciais. Qual é a importância das cotas, na sua avaliação?
Com as políticas de ações afirmativas, dentro das quais temos as cotas, começamos a perceber que, mesmo com muita resistência conservadora e reacionária, tais políticas vão se desenvolvendo gradualmente, no Rio de Janeiro, aqui e ali. Tanto é que hoje temos algumas dezenas de universidades, públicas e privadas, com políticas dessa natureza, programas de governos, etc. Então a coisa se expandiu e houve muita mudança, apesar da resistência.
Falar em cotas no Brasil há um tempo era um disparate. Isso porque o racismo era coisa de americano, mas quando viajei para lá vi que não havia grande diferença entre Brasil e EUA nesse aspecto, nem entre os lugares reservados aos negros lá e aqui. Prevalecia – e ainda prevalece – em muitas cabeças a ideia de que o mérito é igual para todo mundo. Quer dizer, são pessoas que não compreendem que ao final da abolição da escravatura havia um contingente imenso de ex-escravos e seus descendentes, que não tinham os mesmos direitos que os descendentes dos ex-senhores de escravos. Ainda hoje, temos pessoas no Brasil dizendo que o importante é o mérito, não interessa se o garoto nasceu em berço de ouro, foi fazer curso de inglês no exterior porque os pais bancaram, estuda em um colégio de alto nível e depois vai concorrer à universidade com um garoto de uma favela. Quer dizer, segundo essa ideia, os dois teriam o mesmo mérito. O presidente [Michel] Temer, por exemplo, assume um governo e não coloca nem uma mulher, nem um negro no primeiro escalão. E há quem diga ‘ah, mas foi coincidência’, ‘foram escolhidos pelo mérito’. Quando as pessoas dão essas desculpas, supõe-se que as mulheres não têm mérito, nem os negros. Isso é um exemplo de racismo e machismo. As pessoas precisam parar com esse discurso. Falar em mérito numa sociedade assim, como a nossa, é complicado.
Temos uma sociedade extremamente racista do ponto de vista estrutural.”
Os poucos espaços dos negros na universidade são conseguidos principalmente devido às políticas de ação afirmativa. Aquelas argumentações de ‘o ensino vai cair’, ‘eles não vão conseguir acompanhar’, tudo isso caiu por terra. Na Uerj, que foi a primeira universidade a implantar as cotas no Brasil, todos os estudos feitos depois demonstraram que o desempenho dos cotistas não é inferior ao dos não cotistas. Pelo contrário, em alguns casos, é superior. A repetência praticamente inexiste e a evasão é menor, embora ainda hoje se ouça um ou outro desinformado falar o contrário.
Temos um dos parlamentos mais conservadores, quiçá o mais conservador, do período democrático, além de muitos casos de racistas explicitando seu preconceito. Como temas progressistas podem continuar a ser discutidos na sociedade, no sentido de combater a discriminação?
A introdução de políticas de ações afirmativas e cotas no Brasil provocou que racismos enrustidos viessem à tona e os racistas começaram a se posicionar de forma muito raivosa. Essas políticas acenderam o pavio da raiva nos conservadores. E, de fato, temos um parlamento muito conservador. Mas quem é conservador na nossa sociedade? Quem ocupa as maiores agências discursivas, como diz [o crítico e professor indiano] Homi Bhabha? Quem ocupa a literatura, as editoras, os meios de comunicação convencionais, as chamadas artes clássicas, o parlamento? Ainda que os conservadores ocupem um percentual pequeno desses espaços, são grupos, ao mesmo tempo, muito fortes, porque têm poder e voz. Então isso reflete na literatura, no cinema, na televisão, na propaganda, na divulgação de informações.
Qual a relação que o senhor identifica entre o contexto do conservadorismo, da violência na cidade e, por outro lado, das manifestações sociais de 2013?
Nós brasileiros ainda vamos sofrer muito, porque o que está acontecendo é uma reivindicação de cidadania e participação, e a nossa história sempre negou isso. Há sempre um grupo que se arvora à capacidade de dizer o que é bom para todo mundo, mulheres, pobres, negros. E quando dizem o que é bom para você, no fundo, estão dizendo o que é bom para eles. Esperam que você se comporte como eles acham. O que aconteceu nas manifestações em 2013 é uma mistura de tudo isso. Houve uma ação da cidadania e uma reação de setores conservadores, muita participação de setores conservadores querendo jogar a culpa naqueles que queriam avanços mais democráticos. No Brasil há esquerda e direita, tudo bem, mas se observarmos bem, como diriam Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto [pesquisadores italianos que formularam a Teoria das Elites], temos uma circulação das elites ‘no andar de cima’. Quando há uma coisa que afeta esse ‘andar de cima’, direita e esquerda se unem.
O senhor acha que a união das elites se dá em prol de quê, nesse contexto?
Manter o status quo e impedir o avanço democrático. Porque aqueles movimentos estavam reivindicando avanços democráticos. E com isso era preciso abrir espaços de cidadania para os grupos que se consideram discriminados. Os conservadores se colocaram na posição de tentar conter na base da força, como sempre foi na história do país. O que me surpreendeu mesmo foi um governo dito de esquerda embarcar nessa maneira de tentar conter os movimentos sociais pela força. Por exemplo, uma coisa que acho muito estranha é a edição de leis criminalizando movimentos sociais. Houve essa legislação e o governo embarcou. Até hoje não consegui entender isso.
Quando há na sociedade uma estrutura de segurança pública que vê determinados grupos sociais como inimigos, esses componentes – vitória, território, inimigo – são indicadores de uma doutrina militar de guerra, que não cabe para as polícias.”
No livro, o senhor trabalha conceitos como racismo, preconceito, discriminação, injúria racial. Por que é tão difícil identificar que somos uma sociedade racista e punir pelo racismo?
Porque você está lidando com subjetividades. Há grande dificuldade de tipificar o racismo explícito, na forma da ‘Lei Caó’, porque ninguém vai dizer, por exemplo, para alguém não entrar em determinado lugar porque é negro ou não ingressar num trabalho por ser negro. Simplesmente vão dizer ‘está cheio, não há mais vagas’. Mesmo que você veja a mesa vazia, vão dizer ‘está reservada’. Como provar o contrário? É difícil. Aí veio a ‘Lei Paim’, criada por um senador negro [Paulo Paim], que acrescentou ao crime de injúria no Código Penal a conotação racial. Com a tipificação racial, a injúria tem a pena aumentada. Infelizmente, quando as leis são editadas, isso não é feito pelos grupos discriminados, mas por grupos que detêm o poder e fazem parte desse núcleo político, o que eu chamo de ‘establishment’. O ‘establishment’ de uma sociedade é composto por quem detém o poder político, econômico, empresarial e midiático. Alguns setores do movimento negro não compreenderam isso, na época.
Outro problema é a forte resistência de setores do próprio judiciário. Com isso, fica claro que temos realmente uma sociedade extremamente racista do ponto de vista estrutural. O maior problema, a meu ver, é o racismo estrutural, que é diferente do racismo individual. O racismo aberto ou individual é aquele que discrimina um negro individualmente, mesmo que não se diga abertamente isso. O racismo estrutural diz respeito à estrutura da sociedade brasileira e discrimina um grupo social inteiro. É aquilo que o [ativista negro] Stokely Carmichael chamava de racismo institucional, mas prefiro chamar de estrutural, porque se relaciona com a estrutura da sociedade, estabelece onde se pode estar e que lugares se pode ocupar na sociedade. Até no mundo do crime temos uma estrutura social forte, já que na maioria dos crimes envolvendo milhões em dinheiro quase não há negros. É como se dissessem ‘negro aqui não, se quiser roubar pegue um revólver e vá assaltar’ ou que ‘o homem negro é destinado ao trabalho pesado e a mulher negra ao trabalho doméstico’.
Um tema polêmico é a questão do combate às drogas no país. Há um recorte racial nesse combate? E como isso interfere na ação da polícia?
Com o fim da escravidão, foi preciso construir uma identidade nacional brasileira. E como se fez para manter a representação ufanista? Na base da força. Então não temos uma polícia violenta isoladamente, temos uma sociedade violenta, um Estado violento. E se o Estado é violento, como a polícia não seria? O discurso dos governantes, dos secretários de segurança, dos responsáveis pela segurança pública é militarista. Se eles são militaristas, como a polícia não seria? E militarismo é diferente de espírito militar. Por exemplo, as Forças Armadas têm espírito militar, mas não necessariamente são militaristas. Ser militarista é usar o poder militar para oprimir. Quando há na sociedade uma estrutura de segurança pública que vê determinados grupos sociais como inimigos, no qual é preciso tomar o território e obter uma vitória contra o crime, esses componentes – vitória, território, inimigo – são indicadores de uma doutrina militar de guerra, que não cabe para as polícias. A acusação de que a polícia é violenta serve para livrar as elites. Quer dizer, nossas elites são pacíficas, pregam os direitos humanos, mas têm uma polícia que não se enquadra nas políticas dos governantes, que é refratária ao ideal humanístico da elite? Isso é uma mentira.
Com relação às drogas, há uma tendência em falar na descriminalização do consumo privado da maconha como se fosse uma unanimidade, principalmente nas camadas mais altas. Mas enquanto descriminalizam o uso, aumentam a pena para o tráfico. Penso que a ideia com isso é criar um atalho para chegar aos grupos que se quer controlar. A proibição penal, criminal e policial às drogas nada mais é do que um atalho para oprimir. A política de guerra às drogas não é guerra às drogas coisa nenhuma, é ataque a determinados grupos sociais. É um atalho criado pelo poder mundial e adotado por muitos países para atingir determinadas populações em determinados lugares. Porque ao acabar com o combate às drogas, como fica, por exemplo, a indústria das armas? Há muitos setores para os quais isso é importante, o setor de armamentos é um deles. Mas a mídia convencional não se interessa em saber que armas são usadas, qual a sua procedência ou como um criminoso, que não compra as armas em lojas, tem uma arma fabricada no Brasil.
A questão não pode continuar sob o controle do submundo. As drogas, lícitas ou ilícitas, são uma questão social importante, logo, o Estado não pode mandar a polícia resolver, porque questões sociais não são resolvidas pela polícia. É necessária a regulamentação para que haja o controle do Estado. Se houver um controle estatal é possível controlar mais do que hoje. A vitória contra o crime não vai acontecer, nunca vai deixar de haver traficantes enquanto houver usuários, principalmente enquanto a venda estiver nas mãos do submundo. Segundo uma pesquisa feita recentemente pela Organização Mundial de Saúde, o Brasil é o campeão mundial de homicídios, em números absolutos*. A Índia, com 1,2 bilhão de habitantes, tem menos homicídios que o Brasil.
A alternativa é a sociedade compreender que esse modelo não é ruim só para os negros, não só para os discriminados, mas para toda a sociedade, independentemente de cor, sexo, classe, renda. É um modelo ruim para todo mundo. No dia em que as nossas elites políticas, intelectuais e econômicas entenderem isso, vão ver que estamos produzindo uma sociedade extremamente violenta por causa desse tipo de intolerância com o diferente, vide o que acontece com terreiros, centros espíritas e outras religiões de matrizes negra e africana.