Vida de refugiados sírios no Rio é tema de pesquisa na UFF de Angra dos Reis

Mosaico feito por alunas do curso de artesanato oferecido pela Cáritas a refugiados e solicitantes de refúgio.

Desde 2011, com o início dos conflitos na Síria, o mundo vem acompanhando o drama enfrentado pela população do país. A maior parte das pessoas que deixa a região devastada pela guerra busca refúgio em nações vizinhas ou europeias, onde frequentemente são recebidas com hostilidade e xenofobia. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), agência da ONU para refugiados, até 2016, em torno de 4,8 milhões de sírios foram recebidos em países próximos, enquanto cerca de 900 mil migraram para a Europa, muitos deles arriscando a vida atravessando o Mar Mediterrâneo.

O Brasil também participa dos esforços para abrigar os refugiados de guerra. Desde 2013, consulados e embaixadas brasileiras no Oriente Médio emitem vistos especiais e simplificados para permitir que sobreviventes do conflito venham para nosso país. Já são cerca de 2.100 (refugiados) imigrantes sírios vivendo por aqui.

A professora de Antropologia Miriam Alves de Souza, do Instituto de Educação da UFF de Angra dos Reis, é pesquisadora do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (Neom). Ela coordena um projeto de pesquisa pós-doutoral que estuda a chegada, o convívio e o processo de adaptação sociocultural e religiosa dos refugiados sírios no Rio de Janeiro.

Professora, você poderia falar um pouco sobre o seu trabalho de pesquisa?

A pesquisa inicialmente enfoca refugiados do conflito sírio no Rio de Janeiro. Ao utilizar esta categoria, “refugiados do conflito sírio”, também são considerados palestinos e outros grupos nacionais e minoritários residentes na Síria. O objetivo central da pesquisa é, a partir de trabalho de campo antropológico, desenvolver uma etnografia sobre a chegada de refugiados na cidade, focalizando o processo de determinação de refúgio brasileiro e a construção e negociação de identidades políticas e religiosas na diáspora – que é a dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica. Nesta etnografia, pretende-se analisar o processo de negociação e construção de identidade dos sírios - e outros sujeitos afetados pelo conflito - na diáspora, articulando religião e conexões transnacionais como componentes fundamentais.

O que motivou a pesquisa?

Foi o meu desejo em participar do núcleo de pesquisa de meu orientador de doutorado. Meu interesse pelo Oriente Médio começou quando conheci o trabalho dos pesquisadores do Núcleo de Estudos sobre Oriente Médio da UFF. No Neom tenho colegas trabalhando com o Oriente Médio e suas diásporas. No núcleo, já foram e são desenvolvidas pesquisas em países como Síria, Líbano, Egito, Turquia, Marrocos e Tunísia. Por exemplo, o coordenador do núcleo, Paulo Hilu, pesquisou em seu doutorado comunidades religiosas na Síria e, depois disso, em outros países do Oriente Médio. Ele também pesquisa comunidades muçulmanas e do Oriente Médio no Brasil e em outros países da América Latina. Desde o período em que fui orientanda de Hilu no PPGA/UFF, acompanho o trabalho do Neom. Atualmente, com este estudo, não apenas acompanho, mas efetivamente participo do núcleo como pesquisadora. Pretendo me dedicar ao tema não apenas agora, mas em longo prazo. Por isso, estudo a língua árabe e quero fazer trabalho de campo em outros contextos nacionais. Pretendo ainda desenvolver pesquisa com refugiados do conflito sírio, focalizando comunidades ciganas que deixaram a Síria e se refugiaram em países como Líbano e Jordânia. Dessa forma, retomarei o meu trabalho com ciganos. No doutorado, defendido em 2013, pesquisei refugiados ciganos em Toronto, Canadá. Pesquisei ciganos do leste europeu que buscavam proteção canadense por causa da perseguição de grupos neonazistas. A questão do refúgio começou a me interessar profundamente a partir dessa pesquisa.

Quais motivos trazem os refugiados para o Brasil? Familiares, mercado de trabalho, impossibilidade de ir para outros lugares, abertura que o país oferece aos refugiados?

Existem diferentes motivos. Porém, o principal deles é o fato de o Brasil ter uma política de portas abertas aos sírios. O país aparece, ao lado de nações como Equador e Malásia, como um dos poucos destinos legais possíveis. A maioria dos interlocutores de minha pesquisa menciona a entrada fácil e, sobretudo, legal no Brasil como a principal razão de sua escolha. Redes familiares, de amigos e religiosas, no entanto, também têm sido mobilizadas e motivam a vinda.

Qual a recepção que os sírios vêm recebendo no país, mais especificamente no Rio?

A recepção depende de alguns fatores. Importante informar que não existem políticas de acolhimento do estado brasileiro, quero dizer, um programa específico para refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. É possível encontrar algumas iniciativas, mas nada que se compare a uma política de acolhimento ou ações mais estruturadas para a recepção de estrangeiros que busquem proteção no país. Para dar um exemplo, todos os solicitantes a refúgio devem apresentar seus pedidos de proteção no Departamento de Estrangeiros da Polícia Federal, mas neste órgão dificilmente se encontra um funcionário que fale inglês.

Os representantes do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), quando questionados sobre o fato de não existir um programa de recepção, respondem que o convênio firmado com a Cáritas busca atender às demandas por acolhimento. Mas, esta entidade confessional ligada à Igreja Católica, que historicamente e internacionalmente trabalha com refugiados, possui recursos escassos frente à demanda. Os recursos do Ministério da Justiça destinados à entidade não viabilizam ações de recepção.

O que efetivamente encontrei são ações não governamentais como as da Igreja Ortodoxa Antioquina São Nicolau, no Centro do Rio, e da Paróquia São João Baptista da Lagoa, em Botafogo, que abrigam em torno de 15 pessoas. Na cidade de São Paulo, as mesquitas se destacam no trabalho de acolhimento.

Como é o processo de adaptação dessa população no país? Eles têm encontrado dificuldade de se ambientar?

A Síria é um país que compartilha uma cultura de massa globalizada. A principal dificuldade dos sírios que conheci é a falta de interlocutores na língua inglesa. De maneira geral, são poucos os brasileiros que falam a língua, inviabilizando a comunicação. Como mencionei, até mesmo no departamento de estrangeiros da PF, são raros os funcionários que falam inglês.

Nas suas pesquisas, você notou alguma discriminação de brasileiros em relação aos refugiados?

Sim. Posso dizer que o discurso xenófobo é facilmente acionado no Brasil. Um interlocutor mencionou que uma agente do estado disse que ele e demais sírios deveriam falar em português, já que estavam no Brasil. Vale dizer que essa funcionária trabalha com solicitantes de refúgio, ou seja, pessoas que em sua maioria são recém-chegadas ao país.

É importante dizer que a guerra civil na Síria é certamente uma das maiores tragédias do mundo contemporâneo. A guerra tem afetado a população síria de forma brutal, causando o deslocamento forçado de milhares de pessoas, tanto no interior da própria Síria como para fora do país. Estima-se que 7,6 milhões de pessoas estão deslocadas no interior da Síria e que 13,5 milhões precisam de assistência humanitária. O número de refugiados registrados atinge 4,8 milhões. Esses números oficiais permitem afirmar que, diante da crise humanitária do país, é preciso questionar o tratamento dispensado aos poucos que chegam ao Brasil. 90% dos refugiados e solicitantes de refúgio estão nos países vizinhos.

Ocorre estranhamento sociocultural na interação dos sírios com os brasileiros? Como ocorre o processo de compreensão e entendimento de ambas as partes?

A interação depende de vários fatores, incluindo o contexto. A interação com os agentes do estado brasileiro não é marcada pelo estranhamento. A estrutura estatal burocratizada, permeada por relações pessoais e códigos não explícitos no Brasil é familiar aos sírios. Já a exposição do corpo, sobretudo no Rio de Janeiro, com pessoas andando nas ruas com roupa de banho, causa estranhamento.

O hábito brasileiro de homens e mulheres se tocarem é mencionado como um fator de incômodo, mas isso não impede que muitos dos sírios que conheci, mesmo que desconfortáveis, começassem a cumprimentar os brasileiros do sexo oposto com beijos e abraços. Outros fatores de estranhamento são a miséria e a violência urbana. Na Síria, antes da guerra, não se encontravam pessoas dormindo na rua e era possível caminhar com sua família altas horas da noite.

A maioria dos refugiados, sendo muçulmana, lida bem com o fato de entrar em contato com auxílio fornecido por organizações cristãs, como a Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro?

A Cáritas não faz proselitismo em seu trabalho. Nenhum interlocutor da pesquisa reclamou da entidade por ser uma entidade cristã. Eles reclamam, entretanto, da estrutura precária de atendimento, das longas filas e das péssimas condições dos espaços destinados aos solicitantes e refugiados.

Os refugiados veem o Brasil como o local definitivo para estabelecerem suas vidas? Ou eles têm expectativa de voltar para o país de origem em algum momento?

Entrevistei uma família que pretende permanecer no Brasil mesmo com o fim do conflito na Síria. Essa família conseguiu reunir todos os seus membros no Brasil e não tem uma expectativa positiva em relação ao futuro de seu país de origem. Por isso, eles se esforçam para aprender a língua portuguesa e os códigos culturais brasileiros. Então, sim, tenho interlocutores que pretendem ficar no Brasil. Outros, no entanto, consideram deixar o país e voltar para a Síria assim que o conflito acabar ou ir para um país árabe (culturalmente mais familiar) ou, ainda, para um país desenvolvido onde as pessoas falem inglês e onde possam ter acesso a benefícios sociais e uma política de acolhimento e integração. Entrevistei jovens que desejam imensamente viver na Europa, nos Estados Unidos ou no Canadá. Eles querem estudar e trabalhar em países de primeiro mundo. Outros, no entanto, esperam, caso não voltem para a Síria, viver em um país de língua árabe, culturalmente e geograficamente próximo da Síria.

Existe participação de alunos ou outros professores da UFF na sua pesquisa? Qual a importância da universidade na produção do seu trabalho?

Sim, tenho um orientando de iniciação científica do curso de graduação em Políticas Públicas da UFF, em Angra dos Reis, onde sou professora. Esse aluno foi bolsista do edital da Proppi, Fopin 2015 e, atualmente, é bolsista da Faperj. A UFF é muito importante para a pesquisa, pois conto com a colaboração de seus pesquisadores. Como já mencionei, pesquisadores do Neom são interlocutores fundamentais, sem os quais o projeto certamente não teria se idealizado. Além de Paulo Hilu, Gisele Fonseca Chagas, antropóloga do Neom e professora do PPGA/UFF também é uma importante parceira. Neste momento, estamos escrevendo um projeto para concorrer ao edital de pesquisa da Georgetown University Qatar sobre refugiados sírios. Nele, vamos articular pesquisadores do Neom e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Instituto de Estudos em Administração Institucional de Conflitos INCT-INEAC, também sediado na UFF, como a antropóloga Marta Fernandez, que atualmente está na Universidade de Ottawa pesquisando o programa canadense de reassentamento de refugiados sírios. Minha vinculação a estes dois núcleos (Neom e INCT-INEAC), que são parceiros, tem sido fundamental para o desenvolvimento da pesquisa em curso, que conta bolsa de pós-doutorado do Centro de Estudos em Direito e Política de Imigração e Refúgio da Fundação Casa de Rui Barbosa.

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