Escravidão sob a ótica filosófica é tema de pesquisas na UFF de Macaé

A escravidão negra no Brasil durou quase 400 anos, deixando marcas terríveis na sociedade. Mesmo assim, a questão ainda é pouco explorada pela academia, apesar de sua relevância na história brasileira. Ao se dar conta da ausência de estudos sobre o assunto, um grupo de pesquisa composto por um professor e alunos do Instituto de Ciências da Sociedade da UFF de Macaé (ICM) buscou integrar a leitura de autores importantes para a Filosofia Política Contemporânea às reflexões sobre a escravatura.

O professor Daniel Arruda Nascimento, entendendo que a filosofia pode contribuir para a melhor compreensão e aprofundamento do tema, deu início, junto ao seu grupo de pesquisas, a uma série de projetos abordando a escravidão sob uma ótica filosófica. Nos últimos três anos, o grupo deu sequência a três projetos com os títulos Senzala como campo biopolítico: uma investigação filosófica sob o patrocínio das teses de Giorgio Agamben (2014/2015), Processos e sentidos da escravidão: norte filosófico e sul da história (2015/2016), Filosofia e escravidão, racismo e resistência (2016/2017). Abaixo o professor esclarece aspectos importantes do trabalho que realiza na UFF de Macaé.

Professor, o que motivou a série de projetos?

Durante o doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a pesquisa que realizei teve o intuito de identificar e mapear, na obra ainda em formação do filósofo italiano Giorgio Agamben, do ponto de vista da ética e da filosofia política, o percurso que levava de um conjunto de reflexões em torno da crítica da cultura às incursões decisivas do que denominei de crítica do jurídico. O título da tese buscou dar conta dessa trajetória: Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben – publicada como livro com o mesmo título pela Editora LiberArs, São Paulo, 2012.

No período seguinte, o conceito de biopolítica foi adquirindo cada vez mais espaço nas minhas pesquisas. Conversas com colegas professores chamaram a minha atenção para a amplitude do conceito. Em especial, um texto do professor Castor Bartolomé Ruiz, também estudioso da obra de Giorgio Agamben, me despertou para o fato da escravidão negra brasileira poder ser compreendida através da ótica biopolítica – quando o poder político toma como objeto próprio de domínio a vida humana.

A escravidão, longe de ser uma atividade espontânea de indivíduos ou grupos isolados, foi uma política de Estado. Uma rede bastante extensa de países e instituições foi mobilizada para o sustento do tráfego negreiro e da escravidão, não sem o cálculo, a definição, a manipulação e a exploração do que se poderia considerar como vida. Aliás, é possível mesmo afirmar que o estágio no qual se encontra hoje o mundo capitalista não teria se concretizado sem a acumulação de riquezas por países e instituições que espoliaram os continentes africano e americano.

Em que etapa se encontra a pesquisa?

Para este ano, propomos a concentração da pesquisa sobre os ecos do racismo em nossa sociedade, seja pelo desenvolvimento de um pensamento racista que teima em perdurar, seja pela consideração das malhas do que Michel Foucault denominou de racismo de Estado no curso Em defesa da sociedade, de 1976. Segundo o filósofo francês, o racismo é justamente o que permite que a biopolítica se torne uma tanatopolítica (uma espécie de política que tem como resultado a morte), ou seja, que o poder que calcula e produz a vida se transforme em uma máquina letal.

Ao mesmo tempo, propomos a investigação dos meios de resistência, antigos e novos. Reconhecemos assim, em conjunto com autores que procuram revisitar as histórias de resistência na escravidão brasileira – especialmente o historiador Clóvis Moura – a necessidade de se abordar a questão por outro ângulo, que admita o escravo negro brasileiro como protagonista dos processos de resistência contra a escravidão e da abolição da escravatura no Brasil.

No trabalho, o senhor analisa a senzala como ancestral do campo. Poderia explicar este conceito?

No nosso grupo de pesquisa, procuramos avaliar a hipótese de que, como espaço e símbolo da escravidão na história do nosso país, a senzala pode ser compreendida como um ancestral do campo, isto é, como o espaço em que ele pode ser, virtualmente ou estruturalmente, vislumbrado. No estudo, entendemos como a escravidão e a senzala realizaram, antes do nascimento dos campos do século XX, a conversão do homem em recurso biológico, em vida nua (uma vida genericamente exposta à morte ou, do ponto de vista jurídico, desprovida de direitos), na ondulação da fina linha que se estende da biopolítica à tanatopolítica. Assim, as estruturas do campo e da senzala foram comparadas, permitindo lançar outro olhar sobre a tese de que o campo seja um modelo para a política ocidental contemporânea.

Com um trabalho que tem a escravidão como tema, o senhor busca entender melhor a condição do homem moderno? De que modo?

Penso não ser possível dissociar a compreensão da condição do homem moderno da compreensão da sociedade em que vivemos. O Brasil sofre ainda os efeitos nefastos de um sistema de escravidão que durou quase 400 anos. Não apenas do ponto de vista socioeconômico, como bem nos informa o sociólogo Florestan Fernandes, por exemplo, mas também do ponto de vista cultural. Há um samba da Estação Primeira de Mangueira de 1988, destes que surgem de tempos em tempos denunciando a nossa indiferença com a diferença, que traz versos muito esclarecedores: “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”. A Lei Áurea não extinguiu as estruturas socioeconômicas de dominação. Além disso, alguns mitos que persistem entre nós, como o mito da democracia racial ou o mito do bom senhor, causam um estrago difícil de calcular. O racismo escondido, mas endêmico, que orienta o nosso cotidiano é um atestado para tanto.

Quais foram os documentos analisados e como o senhor teve acesso a eles?

Para além da pesquisa bibliográfica, tivemos acesso no ano passado a processos judiciais do século dezenove que envolviam casos de escravidão na cidade de Macaé e região. Isto foi importante porque os nossos alunos bolsistas pertencem ao curso de Direito, embora a pesquisa tenha amparo na Filosofia. Através de uma parceria com o Solar dos Mellos, instituição que hoje abriga o Museu da Cidade de Macaé, os nossos bolsistas puderam realizar suas pesquisas estudando casos de Ações de Liberdade, Ações Penais e Ações Patrimoniais. O acervo possui atualmente uma ordem de 1.611 processos higienizados e prontos para a consulta, com datas que variam do início do século dezenove ao início do século vinte. A análise dos processos escolhidos pela sua relevância para a discussão proposta repaginou a condição jurídica do escravo no complexo do horizonte biopolítico e investigou os sentidos da escravidão. Os trabalhos realizados pelas alunas e alunos foram apresentados posteriormente na Série Encontros no Solar dos Mellos no primeiro semestre letivo de 2016 para um público de professores e estudantes das universidades, da rede pública municipal e estadual.

Como foi a participação dos alunos na pesquisa?

Sempre tivemos uma participação muito comprometida de alunas e alunos na pesquisa, através da sua inserção em programas institucionais de iniciação científica, contando com os apoios da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e da Fundação Educacional de Macaé.

Com a pesquisa desenvolvida em 2014/2015, tivemos a realização dos seguintes trabalhos pelos discentes bolsistas: A senzala brasileira enquanto campo biopolítico (Patrick Farias Nogueira); A inserção do escravo no ordenamento jurídico brasileiro (Fabianni Mussi de Araújo); Escravidão brasileira: a falácia do bom senhor (Agatha Martins dos Santos); Serena escravidão brasileira: suposta suavidade em relação à escravidão norte-americana no período colonial (Eduardo Roberto de Sales). Com a pesquisa desenvolvida em 2015/2016, surgiram os trabalhos: Condição jurídica do escravo no Brasil (Fabianni Mussi de Araújo); Eugenia e pensamento racista no Brasil (Alana Ozório Fernandes); Um estudo comparativo entre a escravidão brasileira e a norte-americana: crítica às teses da benignidade do senhor e da democracia racial (Eduardo Roberto de Sales). Outros três alunos bolsistas estão desenvolvendo suas pesquisas neste período de 2016/2017, Izabella Vicente de Carvalho, Adryanne Leal de Almeida e Felipe Fernando Abreu Ferreira.

E para aqueles que desejarem acompanhar a trajetória do projeto até o momento?

Recomendo a leitura de dois textos já publicados por mim sobre os temas aqui expostos: A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala, apresentado no II Encontro Nacional de Filosofia Política Contemporânea em 2015 e publicado nos Cadernos de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo em 2016, e Apontamentos no rastro biopolítico: sobre escravidão brasileira e animalização do homem, apresentado no V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica em 2015, realizado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, publicado em seus anais.

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