Quando a sociedade é quem anda doente: pesquisa na UFF investiga sofrimento psíquico em tempos de capitalismo selvagem

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Há muitas maneiras de acessar um tempo passado ou presente na história da humanidade, com suas formas de existir, de organizar a vida e se relacionar. Uma das chaves para conhecer cada um desses períodos é através dos modos de sofrimento que se produziram nele. A anorexia, depressão e cutting, por exemplo, são os nomes com que identificamos algumas das dores psíquicas que temos vivido atualmente. Ao contrário do que se pode imaginar, elas têm características em comum e colocam em evidência o modo adoecido como temos nos relacionado em sociedade. 

Buscando compreender esse cenário, foi inaugurado, em 2011, o Laboratório de Investigação das Psicopatologias Contemporâneas (Lapsicon), sob a coordenação da professora do Departamento de Psicologia da UFF de Volta Redonda, Claudia Henschel de Lima. De lá pra cá, o laboratório, que iniciou suas investigações em torno da psicopatologia do uso de drogas, tem expandido bastante a sua pesquisa na direção dos fenômenos clínicos contemporâneos, numa tentativa de cuidar das formas de sofrimento que temos gerado com nosso modo de viver.

Segundo a psicóloga, que também supervisiona uma linha de estágio no Serviço de Psicologia Aplicada da UFF, associada à pesquisa, “começou-se a receber nos últimos anos uma quantidade grande de demandas para tratamento da depressão em mulheres adultas principalmente, tratamento da anorexia, conduta autolesiva, uso de drogas e, mais recentemente, autismo”. De acordo com ela, “o SPA é uma espécie de laboratório no sentido de que ali temos como investigar na singularidade de cada caso quais as conjunturas de desencadeamento dessas psicopatologias e como podemos estabilizá-las ao longo do tempo”, explica.

Há uma exigência excessiva que o sujeito atribui a si próprio de estar sempre bem, sempre saudável, sempre conforme as normas sociais", Claudia Henschel.

O fio que costura todos esses sofrimentos é, para Claudia, a forma contemporânea de organização social de caráter neoliberal, que impacta diretamente o funcionamento subjetivo das pessoas: “O neoliberalismo tem esse traço que localiza no sujeito a responsabilidade completa pelo destino de sua vida. Com seu fundamento de valorização extrema do indivíduo e quantificação de sua ação, estar bem numa determinada atividade depende única e exclusivamente do quanto você é capaz. Há uma exigência excessiva que o sujeito atribui a si próprio de estar sempre bem, sempre saudável, sempre conforme as normas sociais”.

Um exemplo de como isso tem aparecido diz respeito ao sofrimento psíquico estudantil, um dos eixos de investigação do Laboratório. Segundo a professora, “em 2016, começaram a aparecer muitos alunos se candidatando a tratamento e todos tinham uma queixa de estarem com baixíssima concentração nos estudos, de não conseguir entender o que os professores falavam em aula, de olharem para o horizonte de suas vidas e não verem a possibilidade de avançarem em nada. Tivemos algumas situações difíceis no campus e isso chamou a atenção dos meus bolsistas, que vieram me pedir a possibilidade de abrirmos vagas para tratamentos dessas situações dos estudantes. Muitos deles são extremamente preocupados com seu desempenho da universidade, para realizar o ideal que os pais projetaram neles”.

O excesso de exigência também aparece, embora de forma distinta, nas práticas de autolesão do sujeito (cutting), quadro cada vez mais frequente nos consultórios e também no SPA. Claudia explica que a autolesão é comum no momento de passagem da infância para a adolescência: “nesse momento uma série de modificações estão acontecendo no funcionamento subjetivo e na própria imagem corporal. O peso muda, a altura muda, os caracteres sexuais secundários aparecem e alteram a estética do sujeito que às vezes seis meses antes era uma criança. Muitas vezes se experimentam as exigências do mundo como uma espécie de experiência de não pertencimento. A equação é: ‘eu não me enquadro, sou culpado pelo mal que produzo em meus pais e se sou culpado, mereço o castigo e então me corto’. O efeito dessa conduta é a de produzir uma dor física que supere a dor da culpa por fazer mal a seus pais”, ressalta.

A prática da autolesão também coloca em evidência outro aspecto comum na clínica da contemporaneidade, em que a forma como o indivíduo ataca o seu corpo acaba por colocá-lo vulnerável diante da morte: “o que é a anorexia se não a estetização da morte? O sujeito faz uma cadaverização de seu corpo. O que é o cutting se não a prática de ferir e vilipendiar o corpo? Trabalhamos com sujeitos que fazem uso de 12, 14, 15 pedras de crack por dia. Sabemos que no horizonte desses recursos – à lâmina, a não comer nada, à droga – existe a morte. Clinicamente falando, a temática não é uma exceção, mas a regra. Todos os dias na clínica é dia de prevenção do suicídio”.

Para o mestrando em psicologia Thalles Cavalcanti Sampaio, que já participou do Lapsicon como voluntário, monitor e também bolsista de iniciação científica, “um projeto como esse traz à tona a importância da universidade pública para a educação e a ciência. Não é só a garantia de um ensino superior de qualidade, como a prova viva de que, no Brasil, a ciência é desenvolvida dentro das nossas universidades. Estar inserido no Lapsicon me deu a oportunidade de aprender o que é ser um pesquisador hoje no Brasil, o que é uma carreira acadêmica. O Lapsicon me fez querer ser professor, cientista e pesquisador”.

O estudante de psicologia Daniel Cavalcante, atualmente estagiário do SPA e bolsista de iniciação científica do laboratório, engrossa o coro: “vejo que a universidade pública é o maior expoente nacional em produção científica e tecnológica, como em nenhum outro ambiente. A UFF transforma não só a minha vida, como a de colegas meus e das pessoas que usufruem dos produtos e serviços dela à comunidade”, enfatiza.

Maria Stela Campos, também mestranda em psicologia com passagem pelo Lapsicon, tem uma vivência parecida com a de Thalles e Daniel: “participar do Lapsicon permitiu que eu me reconhecesse como pesquisadora, o que em minha concepção ultrapassa a formação acadêmica. Trata-se de um projeto que atravessa também minha vida pessoal”.

Para a coordenadora do laboratório, Thalles, Daniel e Maria não são simplesmente alunos: “eles são meus parceiros de pesquisa”. Segundo ela, ao contrário do que muitos pensam, “a profissão do psicólogo é ancorada em princípios científicos. O estudante não está ali para fazer uma reprodução de saberes; isso ele já fez na escola. Ele está ali para produzir conhecimento. A bolsa de iniciação científica é isso. A bolsa de extensão é isso. A bolsa de monitoria é isso. Essas são as ferramentas que a universidade oferece para a produção de cientistas. Chamo meus estudantes de cientistas em formação”.

Apaixonada pelo seu trabalho e pela psicologia, Claudia afirma não se ver fazendo outra coisa na vida: “se tem uma coisa pela qual não me arrependo é ter insistido numa profissão que minha família na época dizia que não iria dar certo. E eu disse: ‘vai dar certo’. Fiz a universidade num momento terrível do país que era prévio à abertura política. Cursei o mestrado e o doutorado o tempo todo acreditando que era possível. Acho que é isso o que transmito aos meus alunos, o ‘é possível’. Eles, por sua vez, transmitem isso aos pacientes”, conclui.

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